Por Leonardo Corrêa*
Conforme amplamente noticiado pela mídia, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por 7 votos a 4, que autoridades manterão o foro privilegiado mesmo depois de deixarem seus cargos, desde que o processo já tenha sido iniciado no STF. Essa decisão revoga, na prática, o entendimento de 2018, quando a Corte havia restringido o foro para crimes cometidos durante o mandato e em razão do cargo. Agora, mesmo sem mandato, políticos e ex-autoridades continuarão sendo julgados pelo Supremo, ampliando um privilégio que já deveria ter sido extinto. Essa mudança tem impacto direto em investigações contra Jair Bolsonaro, Michel Temer e outros políticos, além de afetar processos relacionados aos atos de 8 de janeiro e denúncias sobre rachadinhas no Congresso.
O problema começa na própria existência do foro privilegiado. Em uma República, a Justiça deveria ser igual para todos. Se um cidadão comum deve responder a um processo na primeira instância, por que aqueles que nos governam merecem um tratamento diferenciado? A justificativa tradicional é a necessidade de proteger autoridades contra perseguições políticas e garantir estabilidade institucional. No entanto, na prática, o foro privilegiado não apenas falhou em cumprir essa função, como também incentivou a politização do próprio STF. Longe de ser um mecanismo de proteção institucional, ele transformou o Supremo em um tribunal de primeira instância para crimes comuns de políticos, sujeitando seus ministros a pressões políticas e levando a julgamentos cada vez mais pautados por conveniências do momento do que por critérios técnicos e jurídicos sólidos.
Além disso, o foro privilegiado prejudicou um princípio essencial do devido processo legal: o duplo grau de jurisdição. Ao eliminar a possibilidade de revisão das decisões por tribunais superiores, ele compromete a qualidade da cognição dos casos, privando os réus de um mecanismo fundamental de correção de eventuais erros judiciais. Nenhum juiz, por mais experiente que seja, está imune a equívocos e vieses. O sistema processual foi estruturado justamente para garantir que instâncias inferiores realizem uma análise aprofundada dos fatos, permitindo que tribunais superiores corrijam distorções e garantam maior segurança jurídica. Ao ignorar esse princípio, o foro privilegiado não protege autoridades de perseguições, mas sim as expõe a julgamentos potencialmente apressados e politizados.
Mas, no que tange ao recente julgado, o problema não está apenas na existência do foro privilegiado em si, e sim no fato de que essa decisão do STF viola a própria estrutura constitucional. O artigo 5º da Constituição estabelece que todos são iguais perante a lei, e essa garantia não é um mero enunciado moral, mas sim um direito subjetivo fundamental, com força normativa superior. O artigo 60, §4º, ao determinar que direitos e garantias fundamentais não podem ser abolidos nem relativizados, mesmo por emenda constitucional, cria um núcleo duro na Constituição que, na hipótese vertente, impede qualquer ampliação do foro privilegiado. Se nem o Congresso pode aprovar uma Emenda Constitucional que mitigue a igualdade perante a Justiça, como pode o STF simplesmente decidir, por meio de interpretação, que o foro privilegiado deve ser expandido?
A situação se torna ainda mais grave ao analisarmos a coerência com a própria jurisprudência da Corte. Até agora, o entendimento do STF era de que a competência do foro privilegiado se mantinha apenas quando o processo já havia sido instaurado antes do fim do mandato. No entanto, no caso específico dessa decisão, o processo só teve início em 2025, muito tempo após o término do mandato. Além disso, como se sabe, inquérito não é processo, e ainda que fosse, os fatos investigados ocorreram após o exercício do cargo, o que significa que não havia qualquer conexão funcional que justificasse a competência do STF. Ou seja, o tribunal não apenas reinterpretou a Constituição para ampliar o foro, mas o fez em um caso em que a própria jurisprudência anterior indicava o contrário.
A Corte não apenas ignorou a hierarquia constitucional, mas fez exatamente o que está proibido pelo próprio texto da Carta Magna: relativizou um direito fundamental intocável. Essa decisão não é apenas juridicamente equivocada, ela é inconstitucional de origem. O foro privilegiado já é uma aberração jurídica em um sistema republicano, mas ao ampliá-lo, o Supremo não apenas reforça privilégios, como também usurpa a função do Poder Legislativo, violando a separação de poderes.
O STF não pode legislar por meio de jurisprudência. Quando decide manter processos no tribunal mesmo após o término do mandato das autoridades, o Supremo não está interpretando a Constituição, mas sim modificando-a sem respaldo legal. Essa postura transforma um privilégio já injustificável em um abuso ainda maior, criando castas jurídicas e reforçando a desigualdade na aplicação da lei.
O foro privilegiado deveria simplesmente deixar de existir. Se queremos igualdade perante a lei, devemos pressionar nossos representantes para eliminá-lo da Constituição. O que não pode acontecer é o STF continuar reinterpretando as regras conforme as circunstâncias políticas do momento. O tribunal deveria ser um guardião da Constituição, não um agente de sua modificação informal.
Enquanto esse privilégio existir, ele continuará servindo a interesses políticos e protegendo aqueles que deveriam ser responsabilizados como qualquer outro cidadão. O foro privilegiado não preserva a justiça, não garante a igualdade e, definitivamente, não deveria ser ampliado. Se queremos uma República verdadeira, sem castas políticas e sem tribunais seletivos, é hora de acabar com esse privilégio de vez.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum