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STF, Anistia e a Separação de Poderes em Risco

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O perdão, em suas formas políticas, sempre revelou muito mais sobre quem o concede do que sobre quem o recebe. A anistia, entre essas formas, ocupa lugar peculiar: é expressão do juízo coletivo do Parlamento sobre a conveniência de apagar juridicamente determinadas condutas, como forma de reconciliação institucional, correção de excessos do sistema penal ou reconhecimento de que o tempo político superou o tempo punitivo do Estado. É, por isso, prerrogativa do Congresso Nacional, prevista de forma clara no art. 48, VIII, da Constituição. Nada há de misterioso nessa previsão. Tampouco há espaço para relativizá-la com base em fórmulas vagas como “proteção da democracia” ou “preservação do Estado de Direito”, especialmente quando essas expressões são usadas como escudos para justificar interferências indevidas do Judiciário nas decisões políticas de outros Poderes.

Esse debate voltou à tona após reportagem publicada pela Folha de S.Paulo, em 28 de março, que discute a possibilidade de anistia ou indulto ao ex-presidente Jair Bolsonaro, investigado por sua suposta participação nos atos do dia 8 de janeiro de 2023. A reportagem traz, por exemplo, a opinião de juristas que veem nos atos de 8 de janeiro um ataque ao núcleo do regime democrático, sugerindo que tais condutas extrapolariam o perdão político. O texto apresenta especialistas que sustentam que crimes contra o Estado democrático de Direito não poderiam ser objeto de anistia ou graça presidencial, justamente por atentarem contra o núcleo do regime. Outros, no entanto, como o professor Georges Abboud, reconhecem que tais condutas, embora graves, não estão fora do alcance das prerrogativas constitucionais do Congresso ou da Presidência.

A tese parece, à primeira vista, nobre. Mas carrega um veneno institucional: se aceita, desloca o núcleo decisório da anistia do Poder Legislativo para o crivo moral e político do Judiciário. O Parlamento perde sua autonomia, e o perdão se transforma em concessão condicionada à aprovação hermenêutica do Supremo. Mas quem são esses onze juízes para arbitrar os contornos morais do perdão coletivo? Com que autoridade política ou superioridade ética se colocam acima de todo o Congresso Nacional — composto por centenas de representantes eleitos — para decidir o que pode ou não ser anistiado? A pretensão não é apenas tecnicamente frágil, mas politicamente questionável.

Tanto o Congresso quanto o júri popular são expressões da soberania do povo — uma no plano legislativo, outra no plano penal individual. Mal comparando, seria como se um juiz togado, inconformado com a decisão de um júri que absolveu um réu, resolvesse anulá-la por considerá-la moralmente errada. O juiz, nesse cenário, não estaria apenas corrigindo uma injustiça: estaria usurpando a vontade do povo. A mesma lógica se aplica à anistia. Quando o Congresso decide perdoar, é o povo — por meio de seus representantes eleitos — quem resolve virar a página. Intervir nesse juízo, sob pretexto de proteger a democracia, é como negar ao próprio povo a autoridade de se reconciliar consigo mesmo.

Essa analogia entre o júri e o Parlamento não é apenas retórica — ela é constitucionalmente republicana. Ambos são expressões da soberania popular institucionalizada. O júri, previsto no art. 5º, XXXVIII da Constituição, julga os indivíduos nos crimes dolosos contra a vida, com a prerrogativa da soberania dos veredictos. O Parlamento, no exercício de sua competência para conceder anistia (art. 48, VIII), julga politicamente os eventos da história recente e decide se cabe ou não o esquecimento jurídico. Em ambos os casos, a Constituição entrega ao povo — direta ou indiretamente — a última palavra. E essa palavra, uma vez proferida, não pode ser anulada por juízos morais ou preferências ideológicas de quem deveria apenas aplicar o texto. Um Constitucionalismo Republicano coerente exige essa deferência às escolhas legítimas do povo. Substituí-las por filtros interpretativos vindos de cima é abandonar a república sob o pretexto de defendê-la. A soberania popular, no entanto, nem sempre encontra aceitação plena, como se verá adiante.

Alguns juristas, como Raquel Scalcon e Arthur Guimarães, citados na mesma reportagem, sustentam que crimes contra o Estado democrático de Direito não podem ser anistiados, pois isso comprometeria os fundamentos do regime. A preocupação é compreensível. Mas transformar a gravidade da conduta em limite material à prerrogativa do Congresso é retirar da Constituição o que ela não quis retirar. A tese de que crimes contra o Estado democrático de Direito escapam à anistia pressupõe uma hierarquia implícita entre normas constitucionais que o texto não estabelece. Se o constituinte quisesse excepcionar tais condutas, teria inserido um limite expresso no art. 48, VIII, como fez com as cláusulas pétreas no art. 60, § 4º. Ausente essa restrição, o argumento repousa em uma construção moral, não jurídica, que desrespeita a literalidade do texto e a intenção originária do legislador. Não há qualquer dispositivo que condimente a anistia à natureza do crime.

A Constituição brasileira não autoriza essa inflexão. Não há dispositivo que condicione a anistia à chancela do Judiciário. Nem há qualquer precedente que sustente tal leitura sem recorrer a juízos valorativos perigosamente expansivos. A tentativa de vetar a anistia por meio de uma “interpretação conforme a democracia” abre um precedente institucionalmente temerário: o veto de hoje a crimes contra o Estado de Direito pode se estender amanhã a motivações religiosas ou ideológicas. O critério não será mais o texto constitucional, mas o espírito de ocasião.

É precisamente contra esse tipo de relativismo hermenêutico que se erguem os fundamentos imutáveis da Constituição. O artigo 5º consagra o princípio da legalidade e assegura os direitos fundamentais como cláusulas pétreas. O artigo 60, § 4º, reforça esse compromisso ao estabelecer que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a separação de Poderes (inciso III) e os direitos e garantias individuais (inciso IV). Esses dispositivos não protegem apenas o conteúdo literal da norma, mas a própria arquitetura do Estado de Direito. Se nem o poder constituinte derivado pode abolir tais princípios, muito menos pode fazê-lo o intérprete sob a capa de uma “leitura progressista”. A Constituição não delega ao Judiciário o poder de reescrevê-la com base em conveniências morais. O que é pétreo não se dobra ao tempo nem à conjuntura. Substituir o comando do texto por uma moral de ocasião é o primeiro passo para dissolver os limites do poder sob a falsa promessa de defendê-los.

Quando o STF quer mandar no perdão, já não há perdão, apenas concessão condicional ao arbítrio da Corte. A anistia vira exceção revisável, e o Parlamento é rebaixado à condição de peticionário. A separação de Poderes, cláusula essencial do constitucionalismo liberal, desfaz-se aos poucos, sob o pretexto de proteger a própria Constituição. Que democracia resiste quando o juiz se torna legislador?”

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

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