Por Rodrigo Chemim*
A imparcialidade do juiz é uma garantia fundamental na democracia. Por isso, o debate em curso no Supremo Tribunal Federal hoje é de grande relevância para o país e deve ser analisado de forma crítica pela doutrina jurídica, que tem justamente o papel de refletir sobre temas fundamentais do Direito.
Conforme vem sendo noticiado, os ministros rejeitaram as alegações de suspeição de Alexandre de Moraes, Flávio Dino e Cristiano Zanin no julgamento de Bolsonaro e dos demais réus. Um jornalista da GloboNews se apresenta para endossar essa decisão do STF, elogiando-a e sustentando que “não há nenhum fato jurídico que possa justificar o afastamento de qualquer um deles do julgamento.”
Mas será mesmo? Vamos examinar cada caso individualmente.
No caso do ministro Zanin, considero acertada a decisão da Suprema Corte. O fato de ele ter atuado como advogado de Lula em processos contra Bolsonaro na Justiça Eleitoral e durante o período eleitoral, por si só, não configura impedimento para seu julgamento. Isso ocorre porque não há uma norma específica no Código de Processo Penal que trate dessa questão.
Embora o regramento do Código de Processo Civil pudesse ser aplicado por analogia – e, na minha visão, deveria –, a jurisprudência do STF há muito tempo rejeita essa interpretação. Embora eu discorde desse entendimento no mérito, reconheço que, nesse ponto, o STF manteve coerência com sua própria linha decisória. Portanto, o jornalista da GloboNews não está equivocado ao defender essa posição. Mas essa coerência se limita a esse caso.
No caso do ministro Dino, é impossível ignorar que ele foi uma testemunha direta dos acontecimentos de 8 de janeiro, episódio descrito na denúncia como o ápice dos crimes imputados. Na condição de ministro da Justiça à época, ele esteve presente no local, acompanhando o desenrolar dos fatos e os desdobramentos da ação delitiva. Além disso, como chefe da Polícia Federal, comandou a resposta do poder público enquanto os eventos ainda ocorriam.
Basta resgatar suas entrevistas da época para confirmar esse envolvimento. E, se ele testemunhou os fatos – ainda que parcialmente –, não pode agora julgar o caso. Essa é uma regra elementar do Código de Processo Penal, expressa no artigo 252, inciso II: “O juiz não poderá exercer jurisdição no processo em que houver servido como testemunha.”
No entanto, essa norma foi simplesmente desconsiderada na decisão do STF.
E quanto ao min. Alexandre de Moraes, é preciso considerar que o Código de Processo Penal, em seu art. 252, IV, determina que um juiz está impedido de atuar quando “for parte ou diretamente interessado no feito.” A denúncia aponta um suposto plano contra sua vida como parte de uma tentativa de golpe de Estado.
Ainda que juridicamente o crime não tenha se concretizado, a narrativa da acusação o coloca como vítima direta. O STF, porém, ao julgar a Arguição de Impedimento 165, afastou essa questão ao argumento de que o crime atinge a coletividade, não uma vítima individualizada.
O erro lógico dessa conclusão ocorre porque o argumento desconsidera que um crime pode ter tanto um impacto coletivo (o Estado é sujeito passivo de todos os crimes) quanto uma vítima específica, o que é relevante para avaliar o impedimento do ministro.
Em acréscimo, o ministro Barroso defendeu que “Se fosse acolhida a tese da defesa, todos os órgãos do Poder Judiciário estariam impedidos de apurar esse tipo de criminalidade contra o Estado Democrático de Direito e contra as instituições públicas”. Trata-se, sempre preservada a devida vênia, do emprego da falácia do espantalho acrescida de uma falsa dicotomia.
O STF evidentemente distorceu a tese da defesa para torná-la mais fácil de refutar. A defesa não argumentou que nenhum juiz poderia julgar crimes contra a democracia, mas sim que o ministro Alexandre de Moraes, por ter sido vítima direta de um planejamento de seu sequestro e morte, tem interesse direto na solução do caso.
O STF distorceu isso e reformulou a questão à luz de uma falsa dicotomia, como se houvesse apenas duas opções extremas: ou Alexandre julga o caso, ou todo o Judiciário fica impedido de julgar. Ignorou outras possibilidades, como a redistribuição do caso para outro ministro que não tenha sido vítima direta de planejamento de morte.
Enfim, a única frase que dá pra concordar integralmente na análise do comentarista da Globo News é que “o caso é muito simples de ser analisado”.
* Rodrigo Chemim – Professor de Processo Penal no Mestrado em Direito na Universidade Positivo e na graduação no Unicuritiba. Doutor em Direito do Estado. Procurador de Justiça.