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A Perseguição de Kassab e o Réquiem do Direito

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Há algo profundamente errado em um país onde nem mesmo o arquivamento definitivo de um processo garante ao cidadão a tranquilidade da lei. Quando decisões com trânsito em julgado são tratadas como meras pausas revogáveis pelo poder, a justiça cede lugar ao arbítrio. Esse é o Brasil de 2025, onde a caneta do Ministro Alexandre de Moraes desenha um futuro sombrio para o Direito.

A decisão do ministro de requisitar o reenvio de uma ação contra Gilberto Kassab ao Supremo Tribunal Federal — apesar de o processo já ter sido arquivado com trânsito em julgado — ultrapassa todos os limites aceitáveis em um Estado de Direito. Não se trata de uma simples manobra processual ou de uma interpretação ousada. Trata-se de um atentado direto contra a noção mais elementar de segurança jurídica. A coisa julgada não é um detalhe técnico; é o pilar que impede o Estado de agir com arbitrariedade, é o muro que separa o poder do abuso, a Justiça do puro arbítrio.

A função jurisdicional, no processo penal, tem por finalidade resolver um conflito submetido à apreciação judicial, mediante provocação e nos limites estabelecidos pela Constituição e pelas leis. Essa função se esgota com o trânsito em julgado da sentença. Depois disso, não há mais jurisdição possível — o que houver é outra coisa, qualquer coisa, menos atividade jurisdicional legítima. O juiz que insiste em atuar fora desse marco deixa de aplicar o direito para se converter em agente político, com finalidades externas ao processo. O reexame de uma ação penal definitivamente encerrada, sem respaldo em lei ou na Constituição, rompe os limites materiais da coisa julgada, viola o devido processo legal e desfigura a própria essência do sistema acusatório.

Reabrir um processo já extinto, com sentença transitada em julgado, é mais do que um erro técnico. É uma afronta deliberada à própria ideia de jurisdição. O ministro que tenta fazê-lo não está mais julgando — está exercendo uma forma ilegítima de poder, com roupagem judicial, mas motivação política. É o Direito sendo instrumentalizado, distorcido e utilizado como ferramenta de intimidação.

A tentativa de avocar um caso já encerrado revela algo ainda mais perturbador: a substituição do juiz da legalidade pelo juiz da finalidade — aquele que julga não com base na norma, mas com base no resultado que deseja alcançar. Não se busca mais aplicar a Constituição; busca-se alcançar determinados resultados. É como se a balança da Justiça tivesse sido inclinada por um propósito estranho ao texto constitucional — não para julgar, mas para impor uma vontade pré-fabricada.

E se para isso for preciso ignorar o trânsito em julgado, rasgar o princípio do devido processo legal ou reescrever a doutrina do foro por prerrogativa de função, que assim seja. O fim passa a justificar qualquer meio, desde que o fim seja conveniente ao intérprete. Quando isso acontece, não há mais Direito. Há apenas vontade.

O Supremo, ao permitir esse tipo de conduta, enfraquece sua legitimidade institucional. Não há democracia que resista a um tribunal supremo que se arvora acima do texto constitucional. A Constituição limita. Quem governa, obedece. E isso vale também — sobretudo — para os juízes.

A decisão de Moraes, nesse contexto, deve ser lida como um sinal de alerta: se nem mesmo a coisa julgada é respeitada, o que resta de estabilidade para o cidadão comum? O que impede que, amanhã, um caso encerrado contra qualquer um de nós seja subitamente reaberto por conveniência? Hoje é Kassab; amanhã pode ser o contribuinte que venceu uma disputa fiscal, ou o trabalhador que ganhou uma causa contra o patrão. E depois de amanhã, quem será? O Estado perde sua previsibilidade, o Direito perde sua autoridade e o juiz perde sua função.

Pior: tudo isso ocorre sob o discurso-pretexto de defender a democracia. Mas uma democracia que exige a suspensão de garantias fundamentais para ser preservada é o rótulo vazio de um regime que usa a Constituição para reprimir sob o pretexto do controle. O uso do Direito como arma política é a antítese da liberdade. Quando a toga se presta a esse papel, a democracia não é salva — é corrompida por dentro, com o aplauso dos que confundem autoridade com autoritarismo.

Quando a coisa julgada vira alvo, o que está em julgamento é, na verdade, o próprio regime de liberdade. É o próprio pacto constitucional. Calar-se diante disso não é opção — é cumplicidade com o réquiem do Direito.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

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