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Entre a Acusação e a Sentença: O STF, a Imprensa e o Devido Processo Legal

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A julgar pela cobertura dos três principais jornais do país — Estadão, Folha de S.Paulo e O Globo — o julgamento de Jair Bolsonaro e aliados pela Primeira Turma do STF tem sido retratado como um momento de reafirmação democrática. Um rito simbólico de preservação da ordem institucional, conduzido com solenidade, e amplamente endossado pelo noticiário. Cada veículo, à sua maneira, adere à narrativa dominante. O Estadão adota um tom de moderação liberal, demonstrando ceticismo pontual quanto à atuação do Supremo, mas sem romper com a moldura institucional. A Folha se posiciona entre o pluralismo formal e o alinhamento difuso com a acusação. Já O Globo abraça de forma mais explícita a retórica da reconstrução democrática, posicionando o STF como protagonista virtuoso e os réus como agentes da desordem. O que une os três é a ausência de questionamento efetivo às premissas jurídicas da denúncia e a tendência a tratar os acusados como culpados antes mesmo da abertura formal do processo. Inverte-se, assim, a lógica da presunção de inocência, transformando uma denúncia em fato consumado.

Ao se examinar o relatório do ministro Alexandre de Moraes, essa inversão se confirma com maior nitidez. O documento, que deveria apresentar os elementos mínimos para fundamentar o recebimento ou não da denúncia, assume a forma de uma peça de acusação. O vocabulário é afirmativo, os verbos são categóricos, a narrativa é construída com segurança incompatível com a etapa processual. Bolsonaro é retratado como líder de uma organização criminosa voltada à ruptura da ordem democrática. Reuniões políticas são interpretadas como passos de uma trama golpista. Críticas institucionais são convertidas em indícios de abolição violenta do Estado de Direito. O ministro emprega expressões como “atos orquestrados” e “frustração eleitoral” para sustentar uma narrativa de premeditação. Chama atenção, ainda, a ausência de construções típicas da linguagem jurisdicional cautelosa — como “em tese”, “segundo a acusação” ou “teria ocorrido” — que são substituídas por afirmações categóricas, sem qualquer modulação. Ainda que se reconheça a gravidade dos fatos investigados, é indispensável que o julgador mantenha o distanciamento necessário à função jurisdicional. A adoção de juízos valorativos antes da instrução penal compromete a imparcialidade e projeta o risco de pré-julgamento.

As defesas, por sua vez, buscaram trazer a discussão para os parâmetros constitucionais e processuais. Celso Vilardi, advogado de Jair Bolsonaro, sustentou que não houve qualquer ato concreto de tentativa de golpe, ressaltando a transição pacífica de governo e a ausência de vínculo direto entre o ex-presidente e os eventos de 8 de janeiro. Criticou a delação de Mauro Cid como contraditória e sem suporte probatório, além de apontar que elementos de prova essenciais não foram devidamente apresentados à defesa. A representação de Braga Netto — feita com maestria por José Luis de Oliveira Lima — destacou a ausência de condutas individualizadas e a falta de oportunidade para manifestação prévia, questionando o motivo pelo qual o Ministério Público não o ouviu. A defesa de Augusto Heleno ressaltou que a acusação se baseia unicamente em sua presença silenciosa em uma transmissão ao vivo, sem qualquer fala, comando ou ação concreta. Já os advogados de Anderson Torres enfatizaram que seu cliente sequer foi mencionado na delação de Cid e que não há nenhum indício de sua participação nos supostos atos golpistas. Representações dos demais denunciados, como Ramagem, Garnier e Paulo Sérgio, reforçaram a tese da ausência de conduta típica, da desproporcionalidade das imputações e da generalização indevida das acusações.

Ainda mais preocupante é o fato de que os votos dos ministros não enfrentaram, de forma racional e específica, os argumentos apresentados pelas defesas. O art. 93, IX da Constituição determina que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas, o que implica mais do que a simples exposição de motivos ou adesão a teses genéricas. A exigência constitucional é por uma fundamentação racional, dialética e profunda, que analise, de maneira pormenorizada, os argumentos apresentados pelas partes. No entanto, durante o julgamento, os ministros da Primeira Turma, com exceção parcial de Luiz Fux, limitaram-se a reafirmar os pressupostos da acusação, sem rebater de forma concreta os pontos levantados pelos advogados — como a ausência de individualização das condutas, a inconsistência da delação de Mauro Cid e a inépcia da denúncia. Sem esse enfrentamento específico, o julgamento corre o risco de se transformar em formalidade retórica, desprovida da densidade que o devido processo legal exige.

Mais grave ainda é o modo como se interpreta, no contexto atual, a atuação das defesas técnicas. A excelência dos advogados — sua precisão, combatividade e domínio jurídico — que deveria funcionar como salvaguarda contra abusos, vem sendo tratada, paradoxalmente, como um fator de legitimação do processo. Como se dissesse: “você se defendeu tão bem que não pode mais alegar irregularidade.” A lógica subverte a essência da justiça. Nesse modelo, quanto mais competente for a defesa, mais confortável o Judiciário se sente para ignorar nulidades, vícios e ilegalidades. A racionalidade implícita se aproxima do absurdo: contrate um defensor inábil, para que o vício seja escancarado e, talvez, reconhecido. O resultado é um paradoxo autoritário: o exercício pleno do direito de defesa, longe de proteger o réu, torna-se um argumento para desprezar seus direitos. É como se as garantias processuais estivessem condicionadas à fragilidade do acusado — uma inversão que corrompe a lógica do devido processo legal e revela uma mentalidade de resultado, não de justiça.

Pois bem. Dito isso, a partir da leitura do voto do relator, seguido pelos demais ministros, torna-se evidente uma oscilação interpretativa que enfraquece a coerência do processo judicial. Em determinados momentos, a Corte invoca a literalidade da lei como fundamento intransponível — como ao rejeitar alegações de suspeição com base no texto do Código de Processo Civil. Em outros, faz-se uso extensivo de dispositivos regimentais e constitucionais para justificar, por exemplo, a manutenção do caso na Primeira Turma, mesmo diante da relevância institucional do julgamento. Essa seletividade hermenêutica evidencia a dificuldade do tribunal em manter um critério uniforme de interpretação. O juiz que ora se ancora rigidamente no texto, ora o ultrapassa segundo as conveniências do caso concreto, compromete a previsibilidade e a segurança jurídica.

A continuidade dos votos apenas acentuou a dissonância que marca o Judiciário brasileiro contemporâneo: ora os ministros invocam o texto da lei como limite sagrado; ora o esticam como elástico hermenêutico ao sabor do resultado pretendido. A legalidade deixa de ser princípio vinculante e passa a ser retórica de ocasião. E isso não pode ser uma escolha do julgador. É justamente aqui que o originalismo de Randy Barnett se impõe como método de contenção do poder — e não como mero artifício exegético. Tomemos dois exemplos do julgamento.

Quando se discutiu a imparcialidade do relator — arguição levantada pelas defesas com base em sua condução dos inquéritos, manifestações públicas e proximidade com os fatos — a maioria dos ministros rejeitou a preliminar com base em precedentes já julgados. Invocaram a literalidade do art. 144 do CPC, que trata de impedimento e suspeição, mas ignoraram que o próprio texto exige “imparcialidade objetiva”, incompatível com a figura de um juiz-acusador. Defenderam o texto, mas ignoraram seu espírito. Minutos depois, ao discutir a competência da Primeira Turma — questão regimental, suscitada diante da magnitude do caso, da condição de ex-presidente de Bolsonaro e do princípio do juiz natural — os ministros não hesitaram em fazer interpretação extensiva do regimento interno, desconsiderando o art. 5º que reserva ao plenário os julgamentos do presidente da República. A justificativa: “não há motivo para tratamento diferente”. Mas o texto prevê o tratamento distinto. E a função do juiz não é uniformizar a exceção, mas respeitá-la.

É nesse ponto que se revela a atualidade do originalismo defendido por Randy Barnett. Seu argumento, fundado na ideia de que o texto da Constituição deve ser interpretado de acordo com seu significado público original, propõe um critério objetivo e limitado ao poder dos intérpretes. O papel do juiz, nessa perspectiva, não é moldar o texto à sua vontade, mas aplicar fielmente o que foi estabelecido pelo legislador ou pelo constituinte. Quando esse compromisso é rompido, abre-se espaço para decisões discricionárias, onde o resultado precede a norma. Como alerta Barnett, uma Constituição que depende da intenção momentânea de seus intérpretes perde sua função de limite ao poder e transforma-se em instrumento de justificação.

A crítica aqui exposta não se confunde com rejeição à jurisdição constitucional nem tampouco com defesa cega dos réus. O que se propõe é o retorno a um modelo de legalidade substancial, no qual os julgamentos sejam orientados por critérios estáveis, impessoais e previsíveis. O STF tem o dever institucional de conduzir o processo com imparcialidade, garantindo que o devido processo legal não seja apenas uma formalidade, mas uma salvaguarda real contra arbitrariedades. No Estado de Direito, não basta julgar — é preciso julgar conforme a Constituição. E isso implica limitar-se ao papel de dizer o que a lei é, e não o que ela deveria ser.

Talvez nenhuma imagem traduza melhor o momento do que a cena do julgamento em Alice no País das Maravilhas. A Rainha de Copas brada: “Sentença primeiro, julgamento depois!” — e não há constrangimento institucional em fazê-lo. O procedimento se inverte com naturalidade porque o desfecho já está escrito. Mas, ao contrário de Lewis Carroll, não estamos em um sonho infantil de nonsense lúdico. Estamos diante de realidades que afetam liberdades concretas. E se a Rainha de Copas oferece sua tirania com teatralidade, o universo de Kafka é mais cruel em sua frieza: o protagonista de O Processo é arrastado por um sistema que não explica, não permite defesa eficaz, e cujo desfecho é previsível justamente porque ninguém sabe ao certo qual é a acusação. No cruzamento entre Carroll e Kafka, o risco não é apenas o erro judiciário. O risco é a corrosão da ideia mesma de justiça — quando o julgamento se torna rito, a defesa vira formalidade e o texto constitucional, um espelho que reflete apenas o desejo de quem o interpreta.

* Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

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