20.5 C
Brasília

A dosimetria da pena de Débora e o alerta de Fux

Publicado em:

Por César Dario Mariano da Silva*

O caso de Débora Rodrigues, condenada por Alexandre de Moraes a 14 anos de reclusão em regime inicial fechado, por diversos delitos, dentre eles contra o estado democrático de direito e associação criminosa, está dando o que falar, não só aqui, mas em todo o mundo, em razão da evidente desproporcionalidade das penas aplicadas, com condenação, inclusive, a valor milionário de indenização por danos morais coletivos.

Ocorre que, até o momento, poucos se deram conta de algo básico em direito penal, a dosimetria das penas, corolário do princípio da individualização da pena, previsto no art. 5º, inc. XLVI, da Constituição Federal.

A individualização da pena desenvolve-se em três etapas: a legislativa, a judicial e a executória.

Na primeira, caberá à lei fixar as penas que serão aplicadas para cada tipo penal. A quantidade da pena deve guardar proporção com a importância do bem jurídico tutelado e a gravidade da ofensa. Por isso, cada tipo penal prevê quantidade mínima e máxima de pena e, em alguns casos, espécies distintas de sanções penais, que podem ser aplicadas, dependendo do caso, alternativa ou cumulativamente.

Na etapa judiciária, caberá ao juiz, à vista da infração cometida, escolher a pena que será aplicada dentre as cominadas no tipo penal, dosar a sua quantidade entre o mínimo e máximo previsto, fazer inserir causas que possam aumentar ou diminuir a reprimenda, fixar o regime de cumprimento da pena privativa de liberdade, bem como analisar possível substituição por pena mais branda.

Cuida-se de critério em que o julgador possui discricionariedade regrada. Isso porque, embora tenha liberdade de escolha quanto à pena que irá aplicar, bem como sua quantidade, deve obediência a regras previstas no Código Penal. Por fim, após a aplicação da pena, há necessidade de sua execução. As diretrizes quanto à execução da pena estão previstas principalmente no Código Penal e na Lei de Execuções Penais.

Quero chamar a atenção para a individualização das penas entre os participantes do delito, que, em razão da maior ou menor culpabilidade, poderão ter penas diferenciadas, com fundamento no artigo 29 do Código Penal.

Diz a norma:

”Art. 29 – Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade. § 1º – Se a participação for de menor importância, a pena pode ser diminuída de um sexto a um terço. § 2º – Se algum dos concorrentes quis participar de crime menos grave, ser-lhe-á aplicada a pena deste; essa pena será aumentada até metade, na hipótese de ter sido previsível o resultado mais grave”.

Em princípio, devido à teoria unitária, todos os participantes de um crime sofrerão a mesma pena abstratamente considerada, segundo o grau de sua culpabilidade. A parte final do dispositivo, que foi introduzida pela reforma penal de 1984, deixa claro que o juiz poderá aplicar pena diferenciada para os participantes do delito, desde que a análise da culpabilidade deles assim o recomende.

O art. 29 do Código Penal é corolário do princípio da individualização da pena, que obriga o juiz a analisar uma série de circunstâncias antes de fixar a reprimenda. Portanto, v.g., em um homicídio praticado por várias pessoas, os coautores e partícipes poderão ter penas diversas estabelecidas de acordo com a culpabilidade de cada um.

O legislador decidiu que a pena do partícipe também deveria ser individualizada de acordo com o grau de sua participação. Assim, se a participação for de menor importância, a pena poderá ser diminuída de um sexto a um terço (art. 29, § 1º, do CP).

Ela deverá ser reconhecida quando a participação do agente tiver exercido pequena eficiência para a execução do crime. Essa diminuição será devido à menor contribuição causal. Assim, quanto maior for a contribuição do agente para a prática do crime, menor deverá ser a redução da pena e vice-versa. Trata-se de direito subjetivo do agente e, caso reconhecida a participação de menor importância na sentença, a redução da pena se torna obrigatória.

Além do mais, pode ocorrer que o autor principal pratique um crime mais grave do que o pretendido pelo partícipe, ensejando o desvio subjetivo entre os participantes (art. 29, § 2º, do CP). Nesse caso, o partícipe responderá pelo crime pretendido e o executor pelo crime mais grave ocorrido. Se o resultado mais grave for previsível ao partícipe, a pena pelo delito que lhe foi imputado será aumentada até a metade.

Exemplo: João quer praticar um delito de furto e combina-o com Carlos. Este entra na casa, enquanto João fica dando cobertura. Porém, Carlos estupra a dona da casa, que lá estava por não ter ido viajar como pensavam os larápios e subtrai os bens com o emprego de violência. Assim, Carlos responderá por estupro e roubo e João por furto. Entretanto, se o resultado mais grave fosse previsível para João, sua pena pelo furto seria aumentada até a metade.

Difícil crer e defender tecnicamente que Débora, com a pichação da estátua da Justiça, seja merecedora das mesmas penas aplicadas aos demais participantes dos crimes, notadamente daqueles que efetivamente vandalizaram os prédios públicos. Sua participação foi mínima, merecendo, assim, a redução máxima da sua reprimenda, que é de um terço.

Isso sem contar que, como já expus em outro artigo, devido à sua conduta de apenas pichar a estátua, muito provavelmente Débora quis participar de crime bem menos grave do que os praticados pelos verdadeiros vândalos, ocorrendo o que a doutrina denomina de desvio subjetivo entre os participantes ou colaboração dolosamente distinta, o que já expliquei em outro artigo publicado (link ao final), o que deveria ter levado à sua condenação apenas pelo delito pretendido e não pela totalidade deles, uma vez que a dúvida sempre favorece o réu.

Ademais, aquele que comete o crime sob a influência da multidão em tumulto, fenômeno conhecido como efeito manada”, terá a pena reduzida como atenuante genérica, desde que não o tenha provocado. Dispõe o artigo 65, inciso III, alínea “e”, do Código Penal, que a pena será sempre atenuada quando “cometido o crime sob a influência de multidão em tumulto, se não o provocou”.

A psicologia explica a influência da multidão em tumulto sobre o ânimo do agente. Nem sempre é fácil aos componentes de uma multidão permanecer à margem de atos ilícitos eventualmente praticados pela turba enfurecida ou perturbada, o que justifica a atenuação da pena, desde que o agente não seja o provocador do tumulto. E tudo indica que, como muitos dos demais participantes, a influência da turba perturbada a levou a cometer o crime, a ensejar necessariamente a redução das suas penas, que, normalmente, é de 1/6 (sobre o tema, vide link abaixo).

Portanto, mesmo que mantida a condenação de Débora, sua sanção deveria ser revista, considerando o princípio da individualização da pena, como, aliás, alertado pelo Ministro Luiz Fux, anotando que, como ela, certamente há inúmeros outros acusados ou condenados, que se encontram na mesma situação.

* César Dario Mariano da Silva é procurador de Justiça, mestre em Direito das Relações Sociais, especialista em Direito Penal. Escritor, professor e palestrante.

Mais recentes

Checagem de fatos