Por Leonardo Corrêa*
O Estadão acaba de lançar um caderno especial que deveria se chamar Como Destruir o Significado de República em Poucas Páginas. Ao longo do material, o jornal se esforça para redefinir o conceito de republicanismo de uma forma tão conveniente ao Estado que beira a propaganda. A ideia central da publicação é simples: a polarização política é um problema grave e precisa ser resolvida com mais regulação estatal, maior controle das redes sociais e, pasmem, uma possível mudança no sistema de governo.
O problema não está na crítica à polarização em si, mas na forma como o Estadão manipula o conceito de República para justificar um Estado mais intervencionista e regulador. Ao invés de defender os pilares clássicos do republicanismo — separação de poderes, governo limitado e soberania popular dentro da lei — o jornal propõe um republicanismo onde a moderação política e o consenso forçado são mais importantes do que a liberdade e o livre debate.
O caderno especial abre com uma pérola: “Crescente radicalização política vivenciada pelo país nos últimos anos alerta sociedade e reforça a importância dos princípios e valores republicanos.” Mas que princípios seriam esses? Ao longo do material, fica claro que a proposta é usar o republicanismo como pretexto para três objetivos principais: regular as redes sociais para limitar o debate, criar um sistema político mais controlado e reforçar a ideia de que a polarização destrói a democracia.
O primeiro ponto se apoia na narrativa de que os algoritmos das redes sociais impulsionam bolhas digitais, impedem o contraditório e aceleram a radicalização. O Estadão defende que a solução seria mais controle estatal sobre essas plataformas, como se o governo fosse um árbitro neutro da verdade. O que o jornal convenientemente ignora é que regular redes sociais para combater “radicalismos” geralmente resulta na censura de vozes dissidentes — uma prática que é tudo, menos republicana. A ironia é que o mesmo jornal que clama por republicanismo parece não ver problema em um Estado que decide o que pode ou não ser debatido na esfera pública.
A segunda grande tese desse caderno é que o sistema político brasileiro precisa ser reformado para lidar com a polarização, sugerindo que a adoção de um parlamentarismo ou semipresidencialismo poderia ser a solução. Curiosamente, o Estadão não menciona que o problema não é o sistema em si, mas sim a degradação institucional promovida por um Legislativo fisiológico e por um Judiciário ativista. Mudar o regime sem resolver as distorções que corroem a representatividade não passa de um desvio conveniente para não tocar na verdadeira questão: o uso da máquina estatal para garantir hegemonia política.
Aliás, se há uma outra forma de interpretar o fenômeno da polarização, é entendê-lo não como um problema em si, mas como a consequência da exclusão deliberada de parcelas significativas da população do processo democrático. Quando determinados grupos são sistematicamente taxados de “antidemocráticos”, “extremistas” ou simplesmente classificados como influenciados por “forças externas”, o que se tem não é um país polarizado — é um país onde um dos polos foi marginalizado do debate público. A Europa já demonstrou como o parlamentarismo pode ser instrumentalizado para esse fim: longe de ser um modelo de governabilidade exemplar, ele frequentemente funciona como um sistema de bloqueio institucional contra forças políticas divergentes, mantendo o establishment no controle sob o pretexto de conter a “radicalização”.
Caso a preocupação fosse realmente com a governabilidade, um caminho natural seria a consolidação de um sistema bipartidário, como ocorre nos Estados Unidos. A polarização poderia, em tese, fortalecer dois grandes blocos políticos, reduzindo a fragmentação e dando mais previsibilidade ao jogo democrático. Mas, no Brasil, isso esbarra em três obstáculos: um sistema eleitoral proporcional que incentiva a proliferação de partidos nanicos e legendas de aluguel; um Judiciário hiperativo que redesenha as regras do jogo a cada eleição, impedindo estabilidade institucional; e uma cultura política personalista, onde partidos giram em torno de lideranças individuais, sem a coesão ideológica que caracteriza o bipartidarismo americano. Sem resolver essas questões, qualquer tentativa de reforma não passa de remendo institucional para manter o status quo.
Por fim, o caderno trata a polarização política como um fenômeno exclusivamente negativo e sugere que ela coloca a República em risco. O Estadão quer nos fazer acreditar que uma sociedade republicana só pode sobreviver se estiver mergulhada em um eterno consenso moderado, ignorando que o conflito ideológico e o embate de ideias são partes essenciais da vida republicana. O verdadeiro risco para a República não é a polarização, mas sim a tentativa de suprimir dissidências políticas sob o pretexto de evitar radicalismos.
A República, no sentido clássico do termo, não é um regime de consenso forçado ou harmonia artificial imposta pelo Estado. O republicanismo autêntico se baseia na separação de poderes, no Estado de Direito e na defesa das liberdades individuais. Nenhum desses elementos exige que os cidadãos concordem entre si ou que o Estado atue como mediador de debates políticos. O que o Estadão propõe não é republicanismo, mas sim estatismo travestido de bom-mocismo institucional. A defesa da regulação excessiva das redes sociais, o reforço da autoridade estatal sobre o discurso público e a ideia de que apenas um sistema político mais “moderado” pode salvar o Brasil são estratégias típicas de quem quer aumentar o poder do Estado e restringir o espaço para a divergência.
Algo que deve ficar bem claro: o Constitucionalismo Republicano defendido pela Lexum não tem absolutamente nada a ver com esse conceito distorcido de República promovido pelo Estadão. A Lexum entende o republicanismo como um sistema que protege a liberdade dos cidadãos contra abusos do Estado, não como um regime que precisa ser “moderado” e “regulado” para evitar polarizações incômodas. A República que defendemos não se preocupa em suprimir conflitos políticos legítimos, mas sim em garantir que as instituições não sejam capturadas para servir a interesses políticos momentâneos. Não defendemos um governo que regula redes sociais para “combater radicalismos”, nem um Estado que define o que é ou não aceitável no debate público. Defendemos um governo limitado, uma Constituição interpretada de forma objetiva e uma sociedade onde as pessoas são livres para discordar entre si sem que o Estado interfira.
O Estadão, ao tentar redefinir o republicanismo como um conceito que serve aos interesses estatais, presta um desserviço ao país. Transformar a República em uma ferramenta de controle político é um erro grave. O verdadeiro republicanismo não se dobra a pressões políticas ou modismos ideológicos — ele protege as liberdades fundamentais contra quem quer restringi-las. E, neste caso, quem quer restringi-las é exatamente quem diz querer “salvar a democracia”.
Para concluir, o caderno especial do Estadão não se sustenta sem recorrer a uma série de falácias, muitas delas descritas por Schopenhauer em Como Vencer um Debate Sem Precisar Ter Razão. O jornal utiliza argumentação circular, ignora contradições evidentes e apela à falsa dicotomia de que ou se aceita sua visão de “República” ou se caminha para o caos. A inversão do ônus da prova, a desqualificação de correntes divergentes e o alarmismo exagerado são empregados para mascarar a verdadeira intenção do material: expandir a tutela estatal sobre o debate político sob o pretexto de combater a polarização.
E aqui reside o ponto central: não é só o Judiciário que muda o sentido das palavras. O Estadão faz o mesmo, utilizando um conceito historicamente consolidado para justificar sua agenda intervencionista. A tática é idêntica à do ativismo judicial — redefinir o significado de termos fundamentais para que sirvam a um propósito político específico. O republicanismo, outrora sinônimo de governo limitado e respeito à liberdade, passa a ser apresentado como um modelo em que o Estado precisa tutelar a sociedade para evitar “excessos”. Assim como o STF já reinterpretou conceitos como “segurança jurídica” e “separação de poderes” para justificar mais poder a si mesmo, o Estadão redesenha a República para que ela se torne menos um sistema de proteção das liberdades e mais um mecanismo de controle social.
Se Marco Túlio Cícero, um dos maiores defensores da República, ressuscitasse e lesse esse caderno do Estadão, certamente o denunciaria como um atentado ao ideal republicano. Para Cícero, a República era um pacto de liberdade e justiça, sustentado pelo império da lei e pelo equilíbrio entre os poderes. No Brasil do Estadão, essa República se torna um aparato estatal de tutela e regulação, onde a liberdade precisa ser restringida para evitar “conflitos”. No fim das contas, o jornal não defende a República — defende um Estado forte, tutelador e hostil ao livre pensamento, o exato oposto daquilo que Cícero considerava o coração da vida republicana.
O republicanismo do Estadão é como A Casa, na pena de Vinicius de Moraes: “não tinha teto, não tinha nada”. É uma estrutura sem fundamentos sólidos, onde a separação de poderes é relativizada pelo ativismo judicial, a soberania popular é filtrada por burocratas e o governo limitado cede espaço a um Estado tutor. Essa “República” não tem chão, porque ignora os princípios institucionais que garantem estabilidade; não tem teto, porque rejeita a liberdade individual como pilar fundamental; e não tem paredes, porque seus limites são definidos conforme a conveniência dos que desejam manipular o jogo político. Mas, como na música, “era feita com muito esmero” – cuidadosamente embalada em um discurso sofisticado para esconder sua essência autoritária. No fim das contas, essa República se situa na “Rua dos Bobos, número zero”, pois só quem ignora a história das democracias pode acreditar que mais regulação, mais controle e menos dissenso são a solução para a polarização.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum