O Regime de Exceção que atualmente governa o Brasil, fruto de uma profana parceria entre Executivo e Judiciário federais, tem como um de seus principais projetos a codificação da censura. A maior tentativa nesse sentido foi o PL das “Fake News”, ou PL da Censura para os críticos (PL 2630/2020).
O projeto se desidratou, mas há várias tentativas de ressurreição: da decapitação brotaram mais cabeças da hidra da censura. Como o projeto original, as novas tentativas se justificam de forma orwelliana, alegando que existem para promover o contrário: “garantia fundamental à livre manifestação do pensamento”, como diz o PL das Fake News das Telecomunicações.
Corta-se uma, nascem várias: as cabeças da hidra da censura
O Voxius, centro de liberdade de expressão do Instituto Sivis, tem feito o monitoramento dos projetos de lei e regulamentações que podem ameaçar esse direito no Brasil. A lista abaixo tem base no trabalho deles, além da minha apuração. O conteúdo opinativo é meu, não do Voxius.
PLP 112/2021, o novo Código Eleitoral. Como comentamos na semana passada nesta coluna, o novo Código Eleitoral parece um cardápio dos sonhos para os executores da censura no Brasil. Criminaliza no contexto eleitoral que candidatos publiquem “fatos sabidamente inverídicos”, permite a juízes remover conteúdo com critérios subjetivos e intimida as redes sociais a aplicar censura prévia para não serem corresponsáveis no pagamento de multas. Também proíbe o dito “disparo em massa” de mensagens, exato vocabulário da acusação progressista contra a campanha de Bolsonaro em 2018, e expande os poderes do TSE.
PL 4691/2024, o projeto “das fake news das teles”. O parecer do Voxius mostra que o texto é vendido como “alternativa” ao PL 2630, mas o ressuscita em quase tudo o que busca implementar: dever de identificação real do usuário (extrapolando até onde vai o veto constitucional ao anonimato), rastreio e armazenamento de dados, responsabilidade solidária das plataformas por conteúdo de terceiros, mitigação obrigatória de “riscos sistêmicos” (art. 7-9) e regime de sanções administrativas fortes. Estão incluídos neste projeto “crimes contra o Estado Democrático”, codificando as estratégias atuais do STF na questão do 8 de Janeiro. Expande os poderes da ANPD para ser um órgão executor.
PL 2338/2023, regulamentação da inteligência artificial proposta pelo senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). Contém, no Artigo 14, um dispositivo para classificar como de “alto risco” atividades de curadoria, difusão, recomendação e distribuição de conteúdo (como as redes sociais). Delega a um Sistema Nacional de Regulação e Governança de IA (SIA) a prerrogativa de expandir a lista de atividades de expressão de suposto alto risco e policiar a “integridade da informação”. O PL das Fake News também queria criar uma agência reguladora para a expressão online. Portanto, este projeto é mais uma ressurreição.
STF: temas 987 e 533 (RE 1.037.396 e RE 1.057.258). Julgamentos que podem derrubar o Artigo 19 do Marco Civil da Internet e instaurar “responsabilidade solidária” por conteúdo “manifestamente ilícito” — equivalendo-se ao PL 2630.
TSE: Resolução 23.732/2024 (atualização da Res. 23.610). Introduziu definição legal de “disparo em massa”, ampliou vedação e multas; criminaliza “fatos sabidamente inverídicos” na campanha; obriga rótulo em conteúdos gerados por IA. Isso antecipa, por via infralegal, o capítulo eleitoral do PL 2630.
Acordos TSE-Plataformas (CIEDDE). Criam canal de remoção acelerada de conteúdos “enganosos” e gerados por IA, reproduzindo o fluxo de cooperação obrigatória previsto no PL 2630 para situações de crise.
Projetos de resistência ao regime
Parlamentares de direita reagiram propondo projetos de lei que vão na contramão do que quer o regime de censura.
PL 592/2023. Proposto pelo senador Jorge Seif (PL-SC), este projeto exige “justa causa” para remover contas ou postagens das redes sociais, dá direito a contraditório para quem teve conteúdo removido injustamente e tipifica como abuso de autoridade ordens de censura sem base legal. Também protege o Artigo 19 do Marco Civil, que não permite censura a perfis inteiros, que está sob vandalismo iminente do STF.
PDL 34/2024. É um decreto legislativo da deputada Julia Zanatta (PL-SC) para dar um fim ao Centro Integrado de Enfrentamento à Desinformação e Defesa da Democracia (CIEDDE), sustando a Portaria 180/2024 do TSE. Está sob análise na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Jair Bolsonaro, sem sucesso, também tentou em 2021 determinar por Medida Provisória (MP 1068/2021) que somente conteúdos ilegais fossem removidos das redes. A MP também dava direito ao contraditório aos censurados pelas redes sociais. Não deu certo, mas inspirou as outras iniciativas.
Por que o regime quer censura
A motivação para a censura é o mito, propagado pelo progressismo nacional desde 2018, de que o populismo nacionalista de Jair Bolsonaro, suposta ameaça à democracia, venceu eleições tendo a mentira como uma de suas principais armas.
O vocabulário recorrente do regime e seus colaboradores é que a campanha vitoriosa de Bolsonaro foi baseada em “disparo em massa de mensagens” contendo “fake news”, “desinformação” e o mal construído termo favorito do Tribunal Superior Eleitoral, “fatos sabidamente inverídicos”. Se é “fato”, por definição não pode ser “inverídico”, sabidamente ou não.
Movimento político nenhum é um amigo completamente leal da verdade, mas a falsidade da tese do regime que “derrotou o bolsonarismo” é atestada bastando que se leia obras como o livro “Janonismo Cultural” (Civilização Brasileira, 2023), do deputado André Janones, praticante confesso de “rachadinha”.
No livro, que resenhei na época do lançamento, Janones confessa ter usado de desinformação para favorecer a campanha de Luiz Inácio Lula da Silva para a presidência em 2022, da qual ele era um dos principais coordenadores.
Por exemplo, Janones diz que inventou uma notícia sobre o conteúdo comprometedor de um suposto celular de Gustavo Bebianno, falecido ex-secretário da presidência de Bolsonaro. Ele chama o celular de “mítico aparelho”.
O deputado confessadamente corrupto sofreu algumas poucas sanções da Justiça eleitoral na época, mas sua obra de desinformação em geral não sofreu nem uma fração da fúria judicial direcionada a apoiadores do ex-presidente, e foi elogiada por influenciadores da esquerda como Paula Lavigne e Eduardo Moreira, que assinam prefácios elogiosos ao livro.
O Regime de Exceção é forte e é herdeiro intelectual da empreitada da esquerda acadêmica americana de tentar criminalizar a mentira. O problema com isso é que o Estado não é o ator benevolente romantizado por essa tribo política: ele é um bandido estacionário que extorque os impostos de todos, um mal necessário para manter mínima ordem, que deveria ter funções limitadas a questões como segurança e poucas outras.
Jamais o Estado deve ter a tutela da verdade, pois isso em si é uma ideia tirânica. A verdade é um bem comum que, quando se mistura com autoridade, geralmente sai perdendo. Portanto, opor-se ao projeto da criminalização da “desinformação” e ao Regime de Exceção é uma questão de princípios para liberais e conservadores.
A maior vitória desses princípios aconteceu quando a votação de emergência do PL das Fake News foi abandonada de última hora, em 2023, porque os apoiadores sabiam que perderiam depois de uma bem-sucedida campanha para rotular o projeto corretamente como um projeto de censura. O projeto de lei morreu de inanição, não por ter sido rejeitado explicitamente. Isso era um prenúncio das tentativas de ressuscitá-lo que o regime e seus colaboradores iniciariam em seguida.
Ninguém, aqui, está defendendo o uso de mentiras dentro ou fora de campanhas eleitorais ou nas atividades dos cargos eletivos. O caso é que já existem leis para barrar os tipos criminosos de mentiras, já existe a regulamentação adequada da internet no Marco Civil (que está sob ataque do ativismo pró-censura) e soluções não-censórias como o direito de resposta. O projeto do Regime de Exceção rejeita nossa base legal já estabelecida para lidar com os problemas das mentiras, boatos falsos e “desinformação”, porque ela não blindou suas tentativas de ter o monopólio do poder.