Entram em vigor nesta quinta-feira (10) as novas tarifas impostas pela China sobre cerca de 84% dos produtos importados dos Estados Unidos. A medida, anunciada na véspera (9) pelo Ministério das Finanças da China, é uma resposta direta à escalada tarifária promovida pelo presidente norte-americano, Donald Trump, no contexto da crescente guerra comercial entre as duas potências. A tensão fez ressurgir um velho temor nas redes sociais: e se a China decidir vender sua imensa quantidade de títulos da dívida dos EUA?
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Hoje, Pequim é o segundo maior credor estrangeiro de Washington, com cerca de US$ 759 bilhões em títulos do Tesouro americano (Treasuries) — atrás apenas do Japão. Esses títulos representam, na prática, anos de financiamento ao governo dos Estados Unidos. Mas uma eventual venda em massa desses ativos funcionaria como um “cheque especial” sendo cobrado de uma hora para outra — e com consequências globais imprevisíveis.
“A China não pode vender indefinidamente”, alertou o investidor e aliado de Trump, Chamath Palihapitiya, em publicação no X (antigo Twitter). Apesar de não estar totalmente fora de cogitação, a venda maciça desses papéis é considerada improvável e autodestrutiva: ao despejar uma grande quantidade de títulos no mercado, o valor dos Treasuries despencaria, fazendo com que a China recuperasse menos do que investiu.
What I Read This Week…
This week, President Trump announced sweeping new import tariffs, including a baseline 10% duty on virtually all imports with higher rates for certain countries.
In response, China immediately implemented 34% tariffs on all U.S. goods while tightening…
— Chamath Palihapitiya (@chamath) April 7, 2025
Em termos simples: seria como vender um título de US$ 50 mil por apenas US$ 30 mil — ou seja, um prejuízo bilionário.
O analista de mercado Hugo Queiroz explica que há duas formas principais de a China acessar os recursos desses títulos: vendendo os papéis no mercado secundário ou negociando a recompra diretamente com o Tesouro dos EUA. Ambas as opções, no entanto, apresentam dificuldades. No caso da recompra, o governo americano teria que devolver todo o montante da dívida chinesa de uma vez só, o que geraria a necessidade de emitir novos títulos a taxas mais altas. Já no mercado secundário, a China poderia sair no prejuízo caso os papéis sejam pré-fixados, já que os juros atuais são mais altos do que os estabelecidos quando os títulos foram adquiridos.
“A China tem aí seus 750 bilhões, como você colocou, atrás do Japão que tem um trilhão. As maneiras, então, nesse caso, ele tá financiando o governo americano. Então, ele dá o dinheiro e recebe esses títulos e, por isso, ele recebe um retorno. Como que ele pode sair desse recurso? Vendendo, recomprando, quer dizer, o tesouro recomprando ou vendendo no secundário, tá? E aí vai depender muito do vértice e da taxa”, explicou Queiroz.
Palihapitiya também afirmou ter ouvido que “a China está despejando títulos do Tesouro dos EUA para tentar mover as taxas, mudar a narrativa e tornar os próximos leilões do Tesouro mais caros”. A fala repercutiu especialmente após os dados divulgados no início da semana: os rendimentos dos Treasuries de 5, 10 e 30 anos subiram 2%, 3,2% e 3,6%, respectivamente — variações incomuns que impactaram diretamente o mercado financeiro. O índice S&P 500, por exemplo, reverteu uma alta de 4% e fechou o dia em queda de 1,57%.
Mesmo que a China não venda todos os títulos de uma vez, o processo de desacoplamento econômico entre os dois países já está em curso há anos. A redução da exposição aos ativos denominados em dólar é parte de uma estratégia de “desrisco” (derisking), que busca diminuir a dependência chinesa da moeda americana sem causar grandes choques no mercado global.
Segundo Queiroz, os títulos de 10 anos dos EUA atualmente oferecem retorno de 4,2% ao ano, enquanto os de 30 anos pagam 4,73%. Diante desses números, vender os papéis agora pode ser financeiramente desvantajoso para a China.
“Provavelmente a China tá perdendo dinheiro, então ela não vai no secundário e os Estados Unidos não vai recomprar, porque não faz o menor sentido, paga mais caro. É muito caro para recomprar então tem que esperar até o vencimento”, afirmou.
Se os papéis forem pós-fixados, o cenário muda. Nesse caso, o Tesouro dos EUA teria que pagar juros mais altos, acompanhando a elevação das taxas, o que geraria um impacto fiscal direto.
“Se for pós fixado a China está ganhando mais dinheiro com esses títulos porque as taxas estão mais altas e isso aí gera problema fiscal para os Estados Unidos que vai despender mais juros”, explica Queiroz.
Em 2013, a China chegou a deter mais de US$ 1,3 trilhão em Treasuries, mas desde então essa cifra caiu quase pela metade. A queda acompanha o aumento das tensões geopolíticas, como o conflito em torno de Taiwan, as sanções contra a Rússia e a busca por reservas alternativas — como ouro e, mais recentemente, o Bitcoin.
O problema é que as alternativas aos Treasuries ainda são escassas e com baixa liquidez. Como destaca um relatório do CEPR de janeiro de 2025, “o mercado de ouro não comporta um despejo de US$ 759 bilhões”. Além disso, euro, iene e libra também enfrentam desvalorização e instabilidade, tornando a diversificação uma opção limitada.
Ainda que o impacto inicial de uma venda massiva recaia sobre os EUA — com alta dos juros, desvalorização do dólar e encarecimento do crédito —, os efeitos colaterais seriam globais. A China veria suas reservas internacionais encolherem e haveria fuga de capitais de mercados emergentes, além de impactos internos em sua própria economia, que já dá sinais de desaceleração.
A projeção de crescimento do PIB chinês em 2025 é de 4,4%, abaixo das metas estipuladas por Xi Jinping, que enfrenta pressões internas e desafios geopolíticos crescentes. Ou seja, pressionar os EUA por meio dos Treasuries pode sair caro também para a própria China.
O analista conclui que, mesmo que a China deixe de renovar seus investimentos em títulos americanos, os EUA ainda poderiam contar com outros países superavitários, como o Brasil, para financiar parte do seu déficit.
“Esse é o meu ponto. Brasil já tem uma grande reserva brasileira, né? O Banco Central já mandou alguma parte para lá e ele pode continuar fazendo esse movimento também. Outros países vão passar a ser superavitários em detrimento da China. Então eu não enxergo como esse risco que alguns estão ventilando”, afirma.