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Uso de Aviões da FAB pelo STF, Sigilo de Passageiros e Privilégios: Um Voo Fora da Constituição

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Estava lendo o jornal pela manhã quando me deparei com a seguinte manchete da Folha de S. Paulo: “Governo empresta aviões da FAB ao STF e coloca sigilo de 5 anos em lista de passageiros”. Confesso que precisei reler. Não por falta de entendimento, mas porque me pareceu coisa de ficção institucional — dessas que, infelizmente, já nem nos espantam mais. Ministros do Supremo Tribunal Federal, em 154 ocasiões desde 2023, utilizaram aeronaves da Força Aérea Brasileira para deslocamentos entre São Paulo e Brasília, com direito a sigilo sobre os passageiros por meia década. O motivo? Segurança. A consequência? O desaparecimento de qualquer limite.

O uso de aeronaves oficiais pelo presidente do STF está previsto em norma como uma prerrogativa funcional específica — não como um direito subjetivo. Já os demais ministros não têm qualquer previsão legal que lhes assegure o mesmo tratamento. E aqui é preciso fazer uma distinção essencial, muitas vezes ignorada: o que se pratica é um privilégio, não um direito. Um privilégio é uma concessão excepcional, dependente de justificação e controle; um direito é uma garantia que o cidadão pode exigir. Quando autoridades públicas passam a exercer privilégios como se fossem prerrogativas permanentes ou direitos adquiridos, o espírito republicano se contorce. E o pagador de impostos, com razão, sente que há algo de profundamente errado — porque em uma república, privilégios precisam ser raros, justificados e extremamente cuidadosos.

A Lei nº 10.480/2002 e o Decreto nº 10.267/2020 delimitam com clareza quem pode dispor das aeronaves da FAB: o Presidente da República, o Vice, os presidentes das Casas Legislativas e do STF, além de ministros de Estado e comandantes militares — todos “em serviço”. O que era exceção virou rotina. E mesmo a prática anterior, de ministros do STF aceitarem caronas em voos do Executivo, já não era propriamente republicana. Favores entre Poderes — ainda que logísticos — criam vínculos informais que desafiam a imparcialidade institucional. Todos estamos sujeitos aos vieses das heurísticas, como a da reciprocidade. E quando o juiz aceita um gesto do governo, por menor que pareça, a separação funcional começa a se dissolver.

O Supremo, que antes pegava carona, passou a solicitar aeronaves próprias. De favor eventual para privilégio consolidado. De carona institucional para primeira classe da República.

A explicação oficial do governo é que os voos se tornaram necessários após as ameaças de 8 de janeiro. Mas ainda que se admita a premissa da proteção, há um abismo entre proteger e ocultar. Sigilo de cinco anos não é proteção — é pretexto. Se o problema é evitar a divulgação antecipada dos deslocamentos, bastaria um sigilo pontual e breve, de uma semana, não uma quarentena documental que cobre metade de uma década. O que se oculta por tanto tempo costuma não ser apenas o destino do voo, mas a origem da prática — e, talvez mais revelador, os nomes daqueles que viajam junto. Em uma república, o passageiro oculto pode dizer tanto quanto o itinerário. Afinal, quem acompanha ministros em voos da FAB não vai apenas de carona: vai legitimado pelo silêncio do poder.

Além disso, a própria utilização da FAB por ministros do STF, para fins não exclusivamente funcionais, não decorre de prerrogativa formal nem de direito algum — é, quando muito, uma tolerância excepcional do Executivo, que se converteu em privilégio institucionalizado. O uso reiterado desses voos, cercado por sigilo e finalidades imprecisas, configura um desvio de finalidade incompatível com o regime republicano. A Constituição é clara em seu artigo 37: os princípios da administração pública são a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Uma autoridade pública utilizando recursos militares pagos com dinheiro do pagador de impostos para ir e voltar de casa ou participar de eventos institucionais viola esses princípios — todos, talvez com exceção da eficiência de agenda.

E há episódios que ultrapassam a fronteira do aceitável. Segundo a própria matéria da Folha de S. Paulo, publicada em 9 de abril de 2025: “No mês passado, como mostrou a Folha, Moraes usou aeronave da FAB na véspera de acompanhar, no estádio, o título conquistado pelo Corinthians no Campeonato Paulista.”

Nos Estados Unidos, por outro lado, um juiz da Suprema Corte em situação semelhante estaria em um voo comercial, sujeito às mesmas filas e restrições que qualquer cidadão — e, se aceitasse transporte oficial para um evento pessoal, enfrentaria escrutínio ético imediato. Lá, a Lei de Ética no Governo e a presunção de transparência tornam impensável um sigilo de cinco anos sobre passageiros, como ocorre aqui. Enquanto o Supremo brasileiro voa em asas militares sob o pretexto da segurança, a Suprema Corte americana mantém-se, em grande parte, no solo da austeridade, livre de favores logísticos que comprometam sua independência. O contraste expõe não apenas uma diferença de prática, mas uma fissura nos alicerces do que significa ser republicano.

Enfim, é difícil encontrar justificativa funcional para esse tipo de deslocamento com aeronave oficial. A eficiência logística, nesse caso, funciona apenas como uma cortina que encobre a distorção institucional em pleno voo. Mas essa eficiência é ilusória quando se ignora o custo político e simbólico da prática. O Supremo Tribunal Federal, que deveria ser o primeiro a dar exemplo de austeridade institucional, assume com naturalidade um conforto que o pagador de impostos jamais poderia imaginar — e paga, sem saber, por cada decolagem. Privilegiar-se do aparato estatal sem transparência ou prestação de contas não é apenas um abuso técnico — é um descompasso moral com os fundamentos da República.

Há também uma questão estrutural mais grave. A permissividade do Executivo em atender a esses pedidos frequentes do Judiciário cria um laço de dependência pouco republicano. O Judiciário torna-se cliente habitual do braço armado do Executivo, e o Executivo, por sua vez, assume ares de mordomo institucional. O problema não é apenas logístico — é simbólico. Quando o conforto substitui o controle e os favores cruzados substituem a fiscalização recíproca, o princípio da separação dos Poderes não é apenas esvaziado — ele é invertido.

Em vez de limites entre funções, vemos uma parceria silenciosa sustentada por privilégios mútuos. E, como todo condomínio do poder, quem paga a conta é sempre o morador comum — o pagador de impostos, que financia os voos, os segredos e o distanciamento crescente entre as instituições e a realidade que deveriam servir.

O sigilo, nesse contexto, não é instrumento de segurança. É uma barreira à responsabilização. A administração pública, sobretudo no exercício de funções tão elevadas, deve ser transparente, controlável e submetida ao olhar da sociedade. A “presunção de sigilo”, adotada com tanta desenvoltura, inverte o que deveria ser o princípio: a presunção de publicidade. Quando isso é ignorado, voamos em direção a um Estado opaco, onde a autoridade não se justifica, apenas se esconde.

A Força Aérea Brasileira deveria estar a serviço da soberania nacional, não da conveniência dos ministros. O sigilo deveria proteger o interesse público, não os passageiros frequentes do poder. E o Supremo Tribunal Federal, que tem como missão guardar a Constituição, não deveria se comportar como quem encontra brechas para driblá-la. Afinal, quando até o voo é uma exceção com asas, o que ainda resta de norma no solo?

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

 

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