Foi publicado hoje o parecer do relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos (CIDH, da OEA), Pedro Vaca Villarreal, sobre o estado desse direito no Brasil. Confira na íntegra aqui.
O relatório decorre de uma visita feita em fevereiro de 2025 a convite do governo brasileiro. Villarreal recebeu muitas denúncias de censura da sociedade civil no país, incluindo um relatório extenso das organizações Lexum, Instituto Liberal e Instituto Mises mostrando dezenas de casos de censura judicial desde 2019, contra a direita e a esquerda.
Também se manifestou a Asfav, associação de familiares dos presos do 8 de Janeiro (que Villarreal chama de “tentativa de golpe”), que tem denunciado tortura em relatórios.
O que o relator concluiu depois de ouvir todos os lados? Villarreal vê uma “clara separação funcional dos poderes, autonomia judicial e um sistema de freios e contrapesos em pleno funcionamento”.
“A Relatoria reitera que o Brasil é um Estado democrático, com eleições livres e justas, com instituições que aderem ao Estado Democrático de Direito”, diz o relatório.
Repetindo o ponto de vista do governo petista e da imprensa alinhada, Villarreal alega que as manifestações que culminaram no 8 de Janeiro foram “extraordinárias” e por isso “exigiram do Poder Judiciário o uso de ferramentas que, como afirmado em suas próprias decisões, são extraordinárias”.
Ou seja, o relatório dá justificativas para um Estado de exceção, cujo mais longevo abuso são os inquéritos inconstitucionais do STF mantidos abertos há quase sete anos. As medidas fora do previsto pela Constituição e outras leis foram justificáveis para “salvaguardar a institucionalidade” porque “relatos confiáveis” assim disseram à CIDH, segundo a relatoria.
Uma limitação recorrente do documento foi a recusa a considerar detalhes dos méritos dos casos individuais, por estarem fora de seu escopo, enquanto ouviu com atenção alegações de autoridades do Estado para suas decisões de limitar a expressão de indivíduos. Isso automaticamente causa um desnivelamento entre indivíduos que se dizem injustiçados e as autoridades que causaram essa injustiça.
Pontos de crítica ao regime e à atmosfera política do país
Villarreal aponta que a polarização política levou a um efeito de desistência de participação em quem se sente “inibido a participar do debate público, uma vez que o debate parece ter se consolidado em posições imutáveis”.
O relator especial lembra que “alguns dos atores que mais acusam o Estado de censura tentam restringir a livre divulgação das ideias de seus oponentes”, cobrando que repudiem “eventos do passado recente que foram considerados pela CIDH como ataques à democracia brasileira, ou mesmo as profundas desigualdades estruturais que desafiam a sociedade brasileira”.
Uma das críticas mais claras ao consenso entre o governo e o STF é esta: “O entendimento de que a liberdade de expressão é um risco para a democracia, em vez de um de seus elementos constitutivos, é um dos problemas mais delicados que foram identificados no marco institucional”.
“A defesa da democracia não pode ser alcançada por meio de restrições exageradas que equivalem a censura”, completou o relator.
O relatório contém críticas aos inquéritos inconstitucionais abertos de ofício no STF, mas geralmente atenuadas por retórica. Por exemplo, diz que “há preocupações de que essas medidas constituam uma concentração de poder”, mas isso vem só depois da afirmação de que o STF “desempenhou um papel fundamental ao iniciar procedimentos para investigar e resolver essa situação”.
Para Villarreal, os inquéritos não constituem um regime autoritário presente, mas podem “criar precedentes que podem ser usados em benefício de regimes potencialmente autoritários no futuro”.
O primeiro Oscar a uma produção brasileira foi dado este ano a mais um filme que lembra a Ditadura Militar, mas, para Villarreal, falta “uma resolução completa desse passado ditatorial, sem iniciativas suficientes de memória”.
Referência à Vaza Toga e discussão das medidas cautelares de Moraes
O relatório incluiu uma discussão das revelações da Vaza Toga e das denúncias de Eduardo Tagliaferro, ex-assessor de Moraes que está na Itália. Contudo, só são citadas as reportagens de Fábio Serapião e Glenn Greenwald, não a “Vaza Toga 2” de David Ágape e Eli Vieira, que estenderam a investigação em agosto e mostraram provas de fichamento ideológico dos detidos do 8 de Janeiro no processo decisório das prisões preventivas.
“A Relatoria observa que os funcionários públicos que divulgam informações sobre supostas violações da lei devem ser protegidos de sanções sempre que tiverem agido de boa-fé, acreditando razoavelmente que tais violações ocorreram, e quaisquer sanções contra eles devem ser baseadas em procedimentos que garantam os requisitos do devido processo legal, com órgãos imparciais e independentes”, diz Villarreal sobre o caso. “Tais proteções são importantes para evitar a intimidação de futuras divulgações”.
Quanto às várias ocasiões em que Alexandre de Moraes impôs via medidas cautelares proibições de dar entrevista, contra Jair Bolsonaro e Filipe Martins, por exemplo, a relatoria disse que “a preservações das investigações e da administração da justiça é um motivo válido” para a restrição, mas que “deve ser justificada de maneira rigorosa”.
Uma das melhores afirmações de Villarreal no relatório é que há “padrões históricos de resistência excessiva à crítica pública por parte de juízes em todo o país”. Em outro trecho, são mencionados casos de intimidação contra jornalistas, como no caso de Rosane de Oliveira e o jornal Zero Hora, condenados a pagar R$ 600 mil de indenização por publicarem informações já públicas sobre a remuneração de uma desembargadora.
O relatório termina com recomendações. Entre elas, convocar o Conselho da República para um diálogo nacional sobre “ataques às instituições democráticas e os conflitos políticos e sociais vigentes”, priorizar e concluir investigações sobre a suposta trama golpista, restringir o uso do sigilo judicial e de medidas cautelares de censura a casos “excepcionais”, garantir que a censura não seja feita com base em “conceitos vagos, abertos ou que de outra forma não atendam aos requisitos da legalidade, como ‘desordem informacional’ e ‘informação descontextualizada’.”
Essa última recomendação é uma das maiores concessões às reclamações da direita sobre o consórcio Planalto-STF-mídia, pois, por exemplo, Ricardo Lewandowski, quando ainda ministro do TSE em 2022, usou o termo vago “desordem informacional” como justificativa para impor censura ao documentário da Brasil Paralelo sobre a facada em Bolsonaro.
Villarreal vai além, propondo explicitamente “descriminalizar o desacato” e os crimes contra a honra, convertendo os últimos em ações civis. É a parte do relatório em que o relator mostra-se mais sensível à censura no Brasil e à mofada base legal que a ampara.
Tristes trópicos, triste viés
Considerando o que temos vindo de outras instituições, Pedro Vaca Villarreal não é o mais enviesado dos esquerdistas. Mas o relatório mostra que, apesar do morde-e-assopra para dar uma ou outra concessão à direita injustiçada, seu viés de esquerda é muito claro.
Para quem duvida, pergunto: um relator que se apresente mais independente, centrista, liberal ou conservador dedicaria tempo a repetir que a “desigualdade estrutural” no Brasil é um dos nossos problemas principais? Combater “desigualdade” (geralmente desigualdade material de resultados) é um valor eminentemente de esquerda.
Villarreal claramente subordina a liberdade de expressão a valores de esquerda: “A Relatoria observa que a relação entre a liberdade de expressão e a luta contra todos os tipos de discriminação e exclusão social no Brasil é uma preocupação latente”. O objetivo de garantir a fala livre é a “construção de um futuro mais inclusivo e igualitário”.
Quem está em risco de ir para a cadeia por oito anos por fazer piadas é Léo Lins, não as minorias que são temas de algumas dessas piadas. Na bolha ideológica de Pedro Vaca, não chegou a notícia de que o identitarismo, obsessão da esquerda por mais de uma década, foi uma das forças que mais promoveram a censura nas Américas nos últimos anos.
Outra cantilena de esquerda do relator: para ele, no país que debateu e aprovou o Marco Civil (vandalizado pelo STF) e a LGPD, há “falta de regulamentação adequada das plataformas sociais privadas”.
Villarreal reclama da “persistência da criminalização do desacato”, e por isso merece aplauso. Mas também reclama da “divulgação de discursos discriminatórios e violentos”, onde deixa seu viés nu ao chamar meros discursos de “violentos”, alinhado com os identitários, e por isso precisa fazer seu dever de casa de aprender com os grandes pensadores de liberdade de expressão, como John Stuart Mill.
Na esteira de mais uma pesquisa do Datafolha mostrando superioridade numérica dos brasileiros autointitulados “de direita”, o relatório vem para mostrar que de nada adianta ter maiorias numéricas se o “outro lado”, inclusive sua parte disposta a censurar, faz uma “longa marcha pelas instituições”, transformando suas opiniões políticas em grandes “pareceres técnicos” como este relatório.
