A Constituição brasileira foi desenhada para conter o poder, não para conferi-lo sem limites. Cada Poder da República possui uma esfera própria de competência e responsabilidade, e ultrapassá-la, ainda que com boas intenções, é violar o pacto de contenção recíproca que sustenta a liberdade em um Estado constitucional. Quando um juiz decide em nome de uma pretensa reciprocidade diplomática, desloca-se do papel de intérprete da lei para o de agente político — e, com isso, compromete silenciosamente o edifício da separação de poderes.
A decisão do ministro Alexandre de Moraes, ao suspender o processo de extradição do cidadão búlgaro Vasil Georgiev Vasilev em razão da recusa da Espanha em extraditar Oswaldo Eustáquio ao Brasil, é expressão nítida desse deslocamento institucional. Sob o pretexto de aplicar o princípio da reciprocidade, o ministro ultrapassa a função jurisdicional e se apropria de atribuições que pertencem privativamente ao Presidente da República, conforme o art. 84, inciso VII, da Constituição. A condução da política externa — e, por extensão, a avaliação de comportamentos diplomáticos de Estados soberanos — é atribuição do Poder Executivo, não do Judiciário. Juízes interpretam tratados, mas não os administram. Juízes julgam pedidos, não países.
Mais do que uma afronta institucional, a decisão carece de coerência lógica. O tratado de extradição entre Brasil e Espanha é um instrumento jurídico internacional com compromissos mútuos, mas sua aplicação não pode se reduzir a um reflexo automático. A recusa espanhola de entregar Eustáquio — por razões jurídicas próprias ao seu ordenamento — não anula, de forma automática, a validade do pedido espanhol contra um cidadão búlgaro acusado de tráfico de drogas. A reciprocidade, neste contexto, não é um botão de revide. É uma cláusula de cooperação jurídica internacional, não um instrumento de retaliação. E sua apreciação institucional é prerrogativa do Itamaraty e da Advocacia-Geral da União — jamais de um juiz, monocraticamente.
A advogada Katia Magalhães, em publicação na rede X (antigo Twitter), destacou com propriedade que foi a Espanha quem atuou conforme o tratado bilateral. O artigo IV, item 1, alínea “f” do Tratado de Extradição entre Brasil e Espanha veda expressamente a entrega de uma pessoa “quando a infração constituir delito político”. A recusa à extradição de Oswaldo Eustáquio, portanto, pode ter se fundamentado na interpretação de que os fatos imputados a ele — por mais controversos que sejam — guardam natureza política. Trata-se de uma exceção legítima e prevista no texto convencional. Já o Brasil, ao suspender a extradição de um cidadão acusado de narcotráfico — crime comum e punido com severidade em ambas as jurisdições — rompe, este sim, com a correspondência jurídica que sustenta o tratado. A Espanha, que cumpre a norma, é punida; o Judiciário brasileiro, que a distorce, arroga-se o direito de retaliar. O juiz, que deveria ser o guardião da legalidade, torna-se agente da ruptura institucional.
A gravidade do desvio se intensifica diante da ordem expressa emitida por Moraes ao embaixador da Espanha no Brasil, exigindo que o governo estrangeiro, por meio de seu representante diplomático, preste informações e comprove, em cinco dias, o cumprimento do requisito da reciprocidade, especialmente no caso de Oswaldo Eustáquio, sob pena de indeferimento do pedido de extradição. Ao condicionar a continuidade de um processo penal à resposta diplomática de outro Estado, o Judiciário brasileiro inverte sua posição constitucional e assume o protagonismo de uma função que não lhe cabe. A jurisprudência cede lugar à política externa, e a toga é usada como megafone institucional. A Constituição não autoriza o Supremo Tribunal Federal a confrontar países. A política de Estado é formulada pelo chefe de Estado — não pelo guardião da legalidade.
A decisão que paralisa o caso Vasilev configura-se menos como um ato jurídico e mais como uma interferência motivada por fatores extrajurídicos. Ao transformar a jurisdição em palco de resposta a decisões estrangeiras, o Judiciário brasileiro compromete seu dever de imparcialidade — princípio consagrado no caput do art. 5º da Constituição e reiteradamente reafirmado pela jurisprudência do STF e da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Quando a toga é usada para penalizar um Estado por não entregar um investigado politicamente indesejado, o juiz deixa de ser o executor da Constituição para se tornar seu editor eventual.
O prejuízo não é apenas institucional. A medida atropela frontalmente o devido processo legal (art. 5º, LIV). Vasilev não foi acusado de delito político, mas de tráfico internacional de entorpecentes. Ele tem o direito de ser julgado com base na sua conduta individual, e não de servir como instrumento de pressão geopolítica. Ao vincular seu caso a um impasse diplomático alheio, a decisão viola também o princípio da individualização da resposta penal — implícito na lógica do Estado Democrático de Direito e reforçado em tratados internacionais assinados pelo Brasil.
Quando um ministro do Supremo Tribunal Federal decide com base em considerações externas à norma, não aplica o direito: o reforma. E ao fazê-lo com finalidades corretivas em relação a outros países, torna-se um agente de incerteza internacional. A Constituição não outorga ao Judiciário o poder de retaliar. Não há qualquer autorização, nem textual nem implícita, para que um magistrado interfira na soberania de outro Estado. O que há — e deveria ser honrado — é a contenção mútua entre os Poderes da República, a deferência entre Estados soberanos e o respeito ao processo legal como condição do convívio civilizado.
O direito não é instrumento de revanche. A extradição não é mecanismo de escambo institucional. Quando o Judiciário transforma o texto constitucional em arma política contra outros países, não há mais legalidade — há arbítrio. E onde impera o arbítrio, a justiça se cala e a Constituição se torna só discurso.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum