Assisti Doubt há muitos anos, na Broadway, com Dame Eileen Atkins no papel da Madre Aloysius. A peça, de John Patrick Shanley, era um soco de silêncios e olhares. Num convento do Bronx, uma madre severa suspeita que um padre tenha abusado de um menino coroinha. Não há prova cabal. Não há confissão. Há apenas indícios, gestos sutis, intuições. Mas a convicção da madre é inabalável — ou parece ser. Ela move céus e terras para afastá-lo, com o peso da sua autoridade moral. E então, no instante final da peça, já sozinha, vencida pela própria inquietação, ela chora e diz: “I have doubts. I have such doubts.” Para quem ficou curioso, vale mencionar que a peça foi depois adaptada para o cinema, com Meryl Streep no papel da madre — e a força da dúvida permaneceu intacta.
Aquele desabafo, vindo de uma mulher que passara a vida agindo como se a dúvida fosse fraqueza, é talvez o momento mais humano do teatro que já presenciei. E me assombra pensar que, no Brasil de hoje, tantos juízes decidiram fazer o oposto: sufocar qualquer dúvida para parecerem fortes, inabaláveis, justiceiros. No julgamento dos réus da suposta tentativa de golpe de 8 de janeiro, a toga tem servido mais como armadura do que como símbolo de prudência. O STF, sob o pretexto da gravidade dos fatos, optou por condenações massificadas, por penas exemplares e narrativas totalizantes. A dúvida — essa virtude republicana que limita o poder e protege o indivíduo — foi tratada como subversão.
Os discursos têm sido duros. As decisões, longas, porém previsíveis. Os votos, muitas vezes padronizados, indiferentes às singularidades de cada réu. A atmosfera é de cruzada moral, como se o tribunal fosse o último bastião contra a barbárie. E, assim, o julgamento se transforma num rito de purgação. Mas até nos ritos mais severos, a justiça precisa hesitar. O olhar para o outro — especialmente quando o outro está no banco dos réus — exige humildade, escuta, proporção. A certeza absoluta é sempre tentadora para quem julga. Mas ela é também, quase sempre, um risco.
Foi nesse cenário que o Ministro Luiz Fux deu um passo raro. No julgamento de Débora Rodrigues dos Santos — a cabeleireira que escreveu “Perdeu, mané” na estátua da deusa Têmis —, Fux pediu vista. Um gesto silencioso, mas eloquente. Um freio diante da pena de 17 anos proposta pelo Ministro Alexandre de Moraes. Nada justificava tamanha severidade. Era como se o ministro pressentisse o excesso e, mais que isso, reconhecesse uma verdade essencial: um fim desejado, por mais nobre que seja — como a defesa das instituições —, não pode ser alcançado por meios proibidos, como penas desproporcionais que sacrificam a justiça em nome da exemplaridade.
Dias depois, durante o julgamento dos réus acusados de participar da suposta tentativa de golpe de 8 de janeiro, incluindo o ex-presidente da República, Fux verbalizou o que antes fora apenas silêncio. Disse: “Julgamos sob violenta emoção após a verificação da tragédia do 8 de janeiro. Eu fui ao meu ex-gabinete […] vi mesa queimada, papéis queimados. Mas eu acho que os juízes na sua vida têm sempre de refletir dos erros e dos acertos.” E completou: “Debaixo da toga bate o coração de um homem, então é preciso que nós também tenhamos essa capacidade de refletir.” Por fim, lembrou que “a fixação da pena é do magistrado” — uma referência sutil à margem de discricionariedade judicial na dosimetria, ainda que limitada pela lei.
Fux não absolveu. Não negou a dor institucional de ver o Supremo invadido. Mas ele reconheceu algo mais profundo: a justiça feita sob violenta emoção pode ser justiça malfeita. E que até mesmo um juiz deve, em algum momento, parar e se perguntar: E se eu estiver errado?
Foi ali, entre a ré do batom e os discursos de toga inflamada, que a dúvida fez sua aparição mais importante desde o início dessa cruzada. Como a madre de Doubt, Fux parece ter pressentido que a verdade moral que se presume reta pode, por vezes, estar assentada em terreno instável. E que o mais trágico erro não é o de absolver um culpado, mas o de condenar um inocente — ou, pior, o de condenar alguém de modo desproporcional, apenas para mostrar força.
Talvez seja isso que falta hoje ao Supremo Tribunal Federal: a coragem de duvidar. A consciência de que julgar é, acima de tudo, resistir à tentação da certeza absoluta. Porque, no fim, só o juiz que carrega a dúvida é capaz de fazer justiça com verdadeira consciência. A madre de Doubt passou toda a peça convencida de estar certa. Só depois de destruir o outro, ela se deu conta do que tinha feito — e chorou, como quem enfim se vê. Que os homens de toga, enquanto ainda há tempo, tenham a grandeza de chorar antes. Não depois.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum