O Projeto de Lei proposto pelo senador Alessandro Vieira, que altera os artigos 359-L e 359-M do Código Penal, vem sendo saudado por alguns como um avanço civilizatório. Seus defensores alegam que ele garante individualização da conduta, proíbe a responsabilidade penal coletiva, introduz o princípio da consunção e diferencia os protagonistas dos coadjuvantes nos eventos de 8 de Janeiro. Mas toda essa excitação legislativa esconde uma verdade desconcertante: o projeto é inútil. Ele não cria nada novo. Apenas repete, em tom de súplica, o que já está previsto na Constituição e no Direito Penal clássico — e que vem sendo sistematicamente ignorado.
A individualização da conduta já é exigência do artigo 5º, incisos LIV e LV, da Constituição. A vedação à responsabilidade coletiva é um princípio basilar da culpabilidade penal. A proporcionalidade da pena é pilar da dogmática penal moderna. E o princípio da consunção é reconhecido há décadas. A norma já existe. O problema é que o Supremo Tribunal Federal decidiu que ela não precisa mais ser aplicada.
Não se trata de uma falha do legislador. Nem de uma omissão do sistema. Trata-se de uma escolha deliberada de uma Corte que trocou o papel de guardiã do texto pelo de autora de seus próprios significados. Não há erro técnico, há ruptura institucional. É o que se viu em inúmeras condenações proferidas no contexto dos atos de 8 de Janeiro: narrativas genéricas, imputações sem nexo causal claro e condenações sustentadas em presença física ou afinidade ideológica.
Houve, é verdade, exceções. E é preciso reconhecê-las. O voto do Ministro Luiz Fux no julgamento da ação penal contra Débora Rodrigues dos Santos foi uma delas. Nele, o ministro reafirma, com sobriedade e rigor técnico, a função do juiz republicano: aplicar a lei. Fux reconheceu a incompetência originária do Supremo para julgar o caso, pois a ré não possuía prerrogativa de foro. Depois, enfrentou o mérito com a serenidade que o Direito exige e o tempo presente despreza. Exigiu prova para além de dúvida razoável, desconsiderou presunções e narrativas genéricas, e rejeitou imputações que não se sustentavam nos autos. A pena imposta limitou-se ao único ato efetivamente comprovado: a pichação de uma escultura com batom. Nada além do que foi provado. Nada além do que a lei permite.
O voto de Fux é um ponto fora da curva — e essa constatação, por si só, deveria nos alarmar. O problema é justamente que, hoje, o que deveria ser o padrão virou exceção. O que se espera da Justiça — imparcialidade, fundamentação, aderência à prova e à legalidade — passou a ser tratado como concessão. O que o projeto de lei tenta fazer, então, é gritar o óbvio: ninguém pode ser punido sem dolo, sem nexo causal, sem conduta típica e comprovada. Mas, ao fazer isso por meio de um novo texto legislativo, ele revela sua própria impotência. Se o Supremo despreza a Constituição, por que respeitaria uma nova lei ordinária? Por que haveria de se submeter agora, em nome da legalidade, se já mostrou que pode moldar os fatos, reinterpretar os tipos penais e transformar tumulto em golpe com base em narrativas de ocasião?
O Direito brasileiro não sofre de ausência normativa. Sofre de desobediência institucional. E não há artigo novo que corrija juízes que se sentem autorizados a reescrever o sistema sob a desculpa da excepcionalidade. O PL da Justiça é uma norma redundante diante de um Poder que já opera com autonomia absoluta. Ele não corrige o desvio, apenas o constata. E ao fazer isso, reforça a ilusão de que a crise é legislativa, quando ela é, na verdade, jurisdicional — e mais que isso, cultural.
Estamos diante de um Judiciário que não responde à lei, mas à sua própria percepção de justiça. E quando os juízes decidem que a legalidade deve ceder diante de uma pretensa defesa da democracia — entendida como vontade da maioria — o que se estabelece já não é mais o Estado de Direito, mas o Estado da Corte. Nesse modelo, o texto constitucional se torna decorativo, e o processo penal passa a operar como um instrumento político, sem amarras normativas.
É precisamente aqui que se revela a importância do ideal de uma democracia republicana. Porque democracia, sozinha, significa apenas o domínio da maioria — e isso, em si, não é garantia de justiça. É a república que impõe limites. É ela que protege o indivíduo contra as facções, impede que a maioria suplante o Direito e blinda os direitos naturais, que no Brasil estão positivados no artigo 5º da Constituição e protegidos pelas cláusulas pétreas do artigo 60. Sem esse freio republicano, o processo deixa de buscar a verdade dos fatos para afirmar a narrativa da ocasião. A legalidade se torna fluida. A condenação passa a depender mais do contexto do que da prova. E o projeto de lei, ao reiterar princípios que já deveriam estar garantidos, soa como um pedido de clemência — ou como um memorial de boas práticas endereçado a uma instituição que já não se vê vinculada a qualquer limite.
Diante disso, a única saída legítima, institucional e compatível com os fundamentos da democracia republicana é a anistia. Não porque todos os atos devam ser perdoados indiscriminadamente, mas porque o próprio processo se contaminou. Quando a lei não é aplicada e a culpa é presumida por pertencimento, o sistema perde legitimidade. A anistia, nesse contexto, não é uma indulgência política, mas um reconhecimento de que o devido processo foi suprimido — e, por isso, a justiça não pode mais ser feita no âmbito dos autos.
Fala-se, por vezes, em impeachment de ministros como resposta. E é verdade que há atos praticados por integrantes da Corte que, em tese, podem configurar infrações político-administrativas graves, justificando o uso desse instrumento previsto na Constituição. Mas é preciso separar os casos. No que diz respeito às condenações dos réus do 8 de Janeiro, por mais que se identifiquem vícios, distorções interpretativas e desrespeitos ao devido processo, trata-se, em essência, de uma controvérsia jurídica. Grave, sim — mas ainda dentro do domínio hermenêutico, e não do ilícito funcional.
O risco está justamente aí: transformar o desacordo interpretativo em fundamento político para destituição judicial. Uma vez aberta essa porta, torna-se difícil fechar. O impeachment, pensado como mecanismo excepcional, passa a ser acionado por divergência de conteúdo — e o resultado disso é a corrosão do já frágil equilíbrio entre os poderes. A democracia republicana não se salva por atalhos. E muito menos se fortalece convertendo seus freios e contrapesos em instrumentos de revanche institucional.
O caminho é a anistia. Pela liberdade, pela justiça e, paradoxalmente, pela preservação institucional da própria Corte que ajudou a corromper o sistema. A única resposta juridicamente limpa à sujeira processual que se instalou é a decisão política de interromper a farsa, reconhecer o erro e devolver à legalidade os que foram condenados sem ela.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum