O caso ocorrido em Goiás — no qual uma mulher procurou uma advogada para ajuizar ação de guarda sobre um bebê reborn — não é apenas uma anedota jurídica. É um sintoma de um tempo em que a confusão emocional pretende ditar os limites do Direito. E mais: é o retrato acabado do delírio woke quando ele se infiltra no sistema jurídico.
Vamos aos fatos elementares: boneco é coisa. Não é pessoa. Não é sujeito de direitos. Não tem dignidade, não tem vontade, não tem autonomia. É um objeto fabricado para imitar a aparência de um ser humano, tal como um manequim, um robô de brinquedo ou uma estátua de jardim. O Código Civil é claro: são bens móveis. E bens não têm guarda. Têm propriedade, posse, alienação e descarte.
Tentar judicializar um afeto projetado sobre uma boneca revela a colonização sentimental do Direito por uma subjetividade sem freios. Sentir não basta. É preciso haver norma, fato jurídico e lógica institucional. Do contrário, o Judiciário se transforma em confessionário ou sala de terapia coletiva — e não foi para isso que Montesquieu concebeu a separação dos poderes.
A acusação contra a advogada — de “intolerância materna” — é um delírio semântico digno de um roteiro distópico. Ninguém é intolerante por negar direitos a uma ficção. Rejeitar um pedido juridicamente insustentável é, antes de tudo, respeitar o Direito. O dever do advogado é aplicar a norma com racionalidade, não validar devaneios com petições.
Esse episódio é apenas mais um reflexo do avanço do wokeismo jurídico, essa ideologia que pretende dissolver qualquer distinção objetiva em nome de uma hiper-subjetividade vitimista. No universo woke, não há mais limites entre o real e o imaginário: tudo é identidade sentida, tudo é causa, tudo é direito. Até boneca vira filha — e discordar disso é “intolerância”.
Mas o Direito não pode ser capturado por um sentimentalismo narcísico travestido de justiça social. A empatia pode ter lugar na escuta, na atenção, no acolhimento. Mas não deve servir de atalho para legitimar pretensões que afrontam a estrutura do ordenamento. Do contrário, amanhã alguém poderá pedir pensão alimentícia para um tamagotchi ou indenização por abandono de pelúcia.
O Direito existe para proteger pessoas reais. Quando o sistema começa a considerar bonecos como destinatários de tutela jurídica, o que está em jogo não é compaixão — é a própria credibilidade da Justiça. Há um limite entre o afeto privado e a razão pública. Chama-se realidade. E ela, felizmente, ainda não se dobra à fantasia — por mais barulhenta que ela seja nas redes sociais.
Machado de Assis, em sua genial ironia, talvez dissesse que tudo isso faz parte da “idéia fixa” — aquela mesma que levou Brás Cubas a inventar emplastros que curariam a humanidade… depois da morte. A diferença é que, agora, querem curar a realidade viva com os delírios de uma afetividade sem freio. Como advertiu o defunto autor: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.” Há paixões que custam caro. Outras querem custar a própria razão.
*Leonardo Corrêa — Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, Fundador e Presidente da Lexum.