Na obra 1984, George Orwell imaginou um mundo onde o Estado controlava tudo: o que se dizia, o que se pensava, o que se lembrava. No Ministério da Verdade, reescreviam-se os fatos. No Ministério do Amor, torturava-se em nome da obediência. No Ministério da Paz, declarava-se guerra em nome da harmonia. Era um mundo de contradições oficiais e verdades fabricadas. Uma distopia, dizíamos nós — confortáveis no otimismo democrático de um país tropical.
Mas o Brasil de 2025 parece decidido a provar que 1984 não era ficção. Era previsão.
Hoje, O Globo estampou em letras sóbrias um aviso sinistro: o governo Lula elabora um projeto de lei que autoriza o bloqueio de plataformas digitais sem decisão judicial, caso descumpram “normas” ou ignorem notificações. Quem decide o que é descumprimento? O próprio governo, é claro. Chamaram isso de “regulação”. Orwell chamaria de censura preventiva.
Na mesma edição, Carlos Alberto Sardenberg traçou o paralelo que salta aos olhos: enquanto Lula e Janja consultam a China sobre como lidar com o TikTok, o Partido Comunista Chinês ri da democracia e cancela redes sociais ao bel prazer. “Aqui não temos a Meta”, teria dito Xi Jinping. É esse o modelo que o Planalto admira? Sardenberg não precisa responder — o tom já denuncia.
No mesmo dia, Demétrio Magnoli, na Folha de S.Paulo, escancarou o novo espírito do tempo: no STF, discute-se aumentar a pena de calúnia quando a vítima é um servidor público. Para o ministro Flávio Dino, atacar o servidor é atacar o Estado. Alexandre de Moraes fala em “leniência punitiva” contra ofensas nas redes — como se discordar de um funcionário fosse crime de lesa-pátria. André Mendonça ainda tentou lembrar que o absurdo é punir a palavra pela função da vítima. Mas a toga virou coroa, e o servidor virou trono. Quem ousa criticar, que perca a cabeça.
No mundo de Orwell, quem ousasse pensar por conta própria era criminoso do pensamento. No Brasil, quem ousa chamar um juiz de autoritário é inimigo da democracia. Quem denuncia abusos é desinformador. Quem pede anistia é golpista. A novilíngua já está em vigor — só falta oficializá-la no Diário Oficial.
A Constituição da República, porém, insiste em dizer o contrário. Ela estabelece, no artigo 5º, inciso IV, que “é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato”; no inciso VIII, que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política”; e no inciso IX, que “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”. São direitos fundamentais — e, portanto, cláusulas pétreas, protegidas pelo art. 60, § 4º, IV, que veda qualquer proposta de emenda tendente a aboli-los.
Sob a ótica do Constitucionalismo Republicano, esse cenário é insustentável. A Constituição brasileira foi desenhada para conter o poder, não para legitimá-lo em sua escalada contra as liberdades. O papel do Judiciário é dizer o que a lei é — não o que ela deveria ser; o papel do Estado é proteger a liberdade — não restringi-la por conveniência de governo.
Mas no Brasil de hoje, a estrutura virou conjuntura. A toga escreve, interpreta, pune e protege a si mesma. O Executivo, sem conseguir convencer pelo argumento, ameaça pelo regulamento. E o cidadão — esse sujeito da República — se vê como réu, mesmo quando cala. Big Brother is watching you. E agora também pode bloquear seu Wi-Fi.
Em 1984, o Ministério da Verdade apagava fatos. No Brasil, apagam-se direitos. Orwell escreveu uma advertência. Estamos transformando em manual. Mas ainda temos uma Constituição — e, enquanto ela viver, não seremos súditos. Seremos cidadãos. E resistiremos.
*Leonardo Corrêa — Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, Fundador e Presidente da Lexum.