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A Geração de Cristal e os Crimes de Injúria e Racismo

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Por César Dario Mariano da Silva*

Sou da época em que os amigos e conhecidos se tratavam por apelidos, muitos deles referentes à raça ou cor. Assim, era comum que os amigos fossem tratados por negão, turco, bode, branquela, japa, alemão e outros apelidos do gênero. E ninguém se ofendia e, ainda, identificavam-se com esses apelidos.

De um tempo para cá parece que as pessoas mais jovens, por conta de uma propaganda massiva de que tudo é racismo, ofensa ou bullying, tornaram-se tão sensíveis, ao ponto de serem chamadas de geração de cristal, talvez pela maior difusão das ideias por meio das redes sociais ou por ser atualmente tudo mais fácil do que antigamente, pelo menos é essa minha impressão.

E o pior é que esse tipo de comportamento encontra ressonância no Poder Judiciário e no Ministério Público, havendo ações penais e condenações muitas vezes por piadas e brincadeiras, que podem ser de muito mau gosto, mas não deixam de ser piadas e brincadeiras.

Mas qual o sentido e o porquê dessas afirmações?

No direito, nem toda frase ou palavra é uma infração penal ou civil. Tudo depende do contexto de como foi dita e da intenção do agente, o que chamamos de dolo.

Dolo é a vontade livre e consciente de praticar a conduta e de produzir um resultado, que pode ser naturalístico (existe no mundo exterior) ou jurídico (presumido pelo direito), normalmente a violação a um bem jurídico, como, por exemplo, crimes de perigo abstrato, em que o perigo de dano é presumido pela lei de forma absoluta (ex: porte ilegal de arma de fogoe tráfico de drogas).

Não vou entrar na questão do dolo eventual, que é aquele em que o sujeito assume o risco de produzir o resultado e o tolera, que não é o caso nesta questão.

É PRECISO HAVER INTENÇÃO

Destarte, quando se diz algo para alguém, só ocorrerá crime contra a honra se houver a deliberada intenção de ofender, no caso de injúria, a honra subjetiva, que é a dignidade ou o decoro, ou seja, o que a pessoa pensa dela própria tomando por base seus atributos físicos, intelectuais, morais e outros, concernentes a toda pessoa humana.

Com efeito, o ânimo de criticar, de defender, de brincar e de narrar um fato, sem a deliberada intenção de atingir a honra alheia, não constitui crime, estando, inclusive, coberto pelo direito à livre manifestação do pensamento e, no caso de artistas, pelo direito à livre expressão da atividade artística, ambos direitos constitucionais previstos no artigo 5º, incisos IV e IX, da Constituição da República.

O denominado “animus jocandi, que é a intenção de brincar, não é considerado crime contra a honra, justamente por não estar presente a vontade deliberada de ofender a honra alheia, seja ela a subjetiva, que fere a dignidade ou o decoro da pessoa (injúria), ou a objetiva, que alcança sua reputação (calúnia e difamação).

A intenção de brincar é comumente empregada por comediantes em seus shows, notadamente de stand-up comedy em que há presunção de que se trata de piadas sem a vontade deliberada de ofender a honra de quem quer que seja. Evidente que se não houve a intenção de ofender, não pode ocorrer crime contra a honra, exceto se a piada for empregada com esse intuito, mesmo que travestida de brincadeira.

Esta, inclusive, foi a conclusão a que chegou a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que trancou inquérito policial instaurado para apurar crime de preconceito contra pessoa portadora de deficiência (cadeirante), previsto no artigo 88 do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Concluiu a Turma que:

“O fato de se tratar de um show de stand up comedy já denota a presunção do animus jocandi, sendo necessário, portanto, elementos no mínimo sugestionadores do dolo específico de discriminação, para que seja possível instaurar um inquérito, o que não se verifica na presente hipótese (STJ: AgRg no RHC 193928/SP, rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, v.u., j. em 16.09.2024).

No crime de racismo não é diferente. É exigida a especial intenção de atingir a coletividade ou o grupo respectivo em razão de uma colocação ou mera palavra.

Recentemente, em 11 de janeiro de 2023, foi publicada a Lei nº 14.532, de 11.01.2023, para tipificar como racismo a injúria cometida em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional, o que até então era previsto como crime de injúria qualificada pelo preconceito no Código Penal no § 3º, do artigo 140.

Diz o novo tipo penal, agora previsto na Lei nº 7.716, de 05.01.1989, que trata dos crimes de racismo: “Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional. Pena: reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Parágrafo único. A pena é aumentada de metade se o crime for cometido mediante concurso de 2 (duas) ou mais pessoas.”

É comum confundir o crime de racismo com o de injúria racial, punido atualmente com pena absolutamente desproporcional, superior à maioria das condutas criminosas tipificadas na Lei nº 7.716/1989.

Uma das normas penais que pune uma das formas de racismo é a prevista no artigo 20 da aludida lei, que dispõe: “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa”.

Na injúria racial, atualmente prevista como racismo com todas suas consequências legais, o autor ofende a vítima usando elementos referentes à cor, raça, etnia ou procedência nacional. A ofensa atinge aquela pessoa especificamente e é contra ela endereçada de forma individual.

Já no racismo, é ofendida toda a raça (branca, negra, amarela, índia e parda) e a ação é voltada contra o coletivo dela, e não apenas ao ofendido individualmente considerado.

Interessante, aliás, que a injúria racial, que atinge pessoa determinada, tem a pena muito superior ao delito previsto no artigo 20, que alcança o coletivo de toda raça, o que me parece um contrassenso, posto que inegavelmente esta última conduta é mais grave por atingir bem jurídico coletivo, mais importante do que o individual.

Enfim, nem tudo é crime de preconceito, racismo ou injúria racial e toda colocação, frase ou palavra devem ser analisadas dentro do contexto e de acordo com o dolo do autor; do contrário, chegaremos a um ponto em que as pessoas estarão tão tolhidas de se manifestarem, brincarem, comemorarem, extravasarem sua alegria ou tristeza, decepção ou orgulho, e outros sentimentos típicos da natureza humana, que o mundo de tão cheio do politicamente correto, será preferível se calar e só falar o estritamente necessário para não ser mal interpretado e virar réu ou investigado pela prática de crime de injúria, racismo, homofobia, assédio sexual ou moral e outros do gênero.

* César Dario Mariano da Silva é procurador de Justiça, mestre em Direito das Relações Sociais, especialista em Direito Penal. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.

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