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A Folha, a Quaest e os Presos do 8/1: Como Se Fabrica um Consenso

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O editorial da Folha de S. Paulo, publicado em 9 de abril de 2025, interpreta os números da última pesquisa Datafolha como um sinal de que a sociedade se opõe firmemente à anistia dos condenados pelos atos de 8 de janeiro. A manchete é incisiva: “Maioria contrária tira fôlego de ofensiva pela anistia”. Mas há um problema estrutural nesse tipo de leitura: ela parte da premissa de que os números refletem, de fato, uma opinião pública plenamente informada e livre. A realidade é outra. Quando a pergunta já traz embutida a resposta que se espera obter, não estamos diante de um retrato fiel da sociedade — mas de uma simulação conveniente de consenso.

A credibilidade de uma pesquisa de opinião depende, antes de tudo, da forma como a pergunta é feita. Pode parecer um detalhe técnico, mas não é. Perguntas mal formuladas, enviesadas ou carregadas de suposições moldam o pensamento do entrevistado sem que ele perceba. Essa dinâmica foi amplamente estudada por autores como Daniel Kahneman, Malcolm Gladwell, Robert Cialdini e Richard Thaler. Todos demonstram como decisões supostamente racionais são, na verdade, influenciadas por vieses cognitivos, atalhos mentais e pequenos empurrões retóricos.

Kahneman explica, por exemplo, que operamos com dois sistemas de pensamento. O primeiro, chamado “Sistema 1”, é rápido, automático e emocional. É o modo com que tomamos decisões no cotidiano, sem refletir muito. Já o “Sistema 2” exige atenção, esforço e análise crítica — e é menos acionado em pesquisas respondidas de forma rápida por telefone ou aplicativos. Se a primeira opção apresentada ao entrevistado soa bem formulada, jurídica e razoável, o Sistema 1 tende a aceitá-la imediatamente, sem buscar uma alternativa. Em outras palavras: quem controla a forma da pergunta, controla boa parte da resposta.

Não encontrei as perguntas feitas pelo Datafolha, mas tomemos o exemplo da pesquisa Quaest, publicada poucos dias antes, que indagou os entrevistados sobre o que deveria acontecer com os “envolvidos na invasão do 8 de Janeiro”. A primeira opção era: “Continuar presos por mais tempo e cumprirem suas penas”. Soa técnica, legítima, ponderada. Mas contém uma armadilha: pressupõe que os réus já foram julgados com o devido processo legal, o que está longe de ser verdade. Muitos foram condenados diretamente pelo STF, sem prerrogativa de foro, sem direito à sustentação oral e sem individualização da conduta. Foram punidos não por atos concretos, mas por estarem presentes no local.

As outras opções da pesquisa soam radicais ou frágeis: “nem deveriam ter sido presos” ou “já estão presos por tempo demais”. O efeito disso é conhecido por Richard Thaler como nudge, ou empurrão. O entrevistado, especialmente quando pouco informado, escolhe o que parece mais aceitável — mesmo que não conheça os fatos. Malcolm Gladwell, em Blink, reforça: quando a linguagem de uma opção transmite autoridade, ela tende a dominar o espaço de decisão. É o que aconteceu aqui.

A Folha, ao repercutir a pesquisa do Datafolha, deixou de publicar — ao menos na notícia — as perguntas feitas. Partindo do pressuposto de que usaram a mesma formulação da Quaest, percebe-se um viés de estruturação. A pergunta não explica o que se entende por “golpismo”, não informa como se deram os julgamentos nem expõe os abusos processuais apontados por juristas de diferentes correntes. Ao contrário, sugere uma condenação já pacificada. Mais do que informar, isso reforça uma narrativa. O curioso é que a própria série histórica da Datafolha merece ceticismo: em dezembro de 2023, 62% eram contra a anistia; agora, o número caiu para 56%. Uma queda de seis pontos percentuais, em tese, indicaria maior apoio à anistia — mas o editorial ignora esse dado — e a tendência de queda — para apresentar os 56% como reforço à condenação. Se a pesquisa mostra que os favoráveis cresceram de 33% para 37%, por que esse movimento é minimizado?

Exemplos históricos mostram que pesquisas enviesadas já foram usadas para moldar decisões políticas com aparência de legitimidade popular. Em 2003, nos EUA, uma pesquisa do Washington Post perguntava: “Você apoia a invasão do Iraque para remover as armas de destruição em massa?” — ignorando que nenhuma arma havia sido provada. A pergunta ajudou a legitimar a guerra. No Brasil, em 2010, uma pesquisa perguntava se o cidadão “era contra ou a favor de aumentar a maioridade penal para proteger a sociedade” — já induzindo uma associação entre punição e proteção, como se fossem inseparáveis.

Quando a opinião pública é moldada por esse tipo de pergunta, cria-se um ambiente de aprovação artificial. Isso tem consequências práticas. Políticos deixam de pautar propostas por convicção e passam a segui-las por cálculo. O Congresso resiste à anistia não porque analisou as penas e viu proporcionalidade, mas porque teme ser acusado de “passar pano”. O Supremo, por sua vez, é legitimado a manter condenações draconianas porque pesquisas indicam “apoio popular” — ainda que esse apoio tenha nascido de perguntas que o próprio sistema moldou.

Uma pergunta realmente isenta poderia ser: “Na sua opinião, o que deveria acontecer com os envolvidos nos atos de 8 de Janeiro, considerando que muitos foram julgados diretamente pelo STF, sem direito a sustentação oral, e sem individualização das condutas?” E então oferecer alternativas neutras, como: “Cumprirem pena se forem condenados por atos individualizados”; “Responderem ao processo em liberdade, com medidas cautelares”; “Terem suas prisões revistas por excesso de prazo”; “Serem mantidos presos preventivamente até julgamento”; “Outros”; “Prefere não opinar”. Essa estrutura informaria, não induziria. E permitiria respostas mais fiéis ao que as pessoas realmente pensam — quando têm acesso a todos os fatos.

Essa estrutura de pergunta não induz porque apresenta os fatos relevantes de forma objetiva e oferece alternativas simétricas, sem carregar juízos de valor ou termos emocionalmente carregados. Nenhuma das opções é colocada como mais legítima, mais racional ou mais bem formulada que as outras. Todas partem da premissa de que ainda há um processo em curso — o que é verdade — e permitem que o cidadão escolha livremente entre manter a prisão, rever os excessos ou aplicar medidas alternativas. Diferente da pergunta enviesada da Quaest, que pressupõe culpa e cumprimento de pena, essa formulação respeita o direito à dúvida e à ponderação.

É importante lembrar que, embora pesquisas de opinião não sejam atos judiciais, elas interferem diretamente na formação da opinião pública e podem ser usadas para justificar políticas públicas, endurecimento penal e decisões judiciais controversas. Por isso, há sim um dever ético — e, em certos casos, legal — de garantir que as perguntas sejam claras, honestas e equilibradas. No Brasil, as pesquisas eleitorais são reguladas pela Lei nº 9.504/97 e pela Resolução TSE nº 23.600/2019, que exigem metodologia transparente, registro prévio e divulgação fiel. Fora do período eleitoral, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor, que veda práticas enganosas ou abusivas na comunicação com o público. Em outras palavras, mesmo fora da urna, a manipulação sutil continua sendo uma forma de desinformação. Aliás, isso sim é desinformação — não as postagens de indivíduos em redes sociais que, goste-se ou não de seu conteúdo, são protegidas pela liberdade de expressão. Quando uma pergunta é redigida para induzir uma resposta específica, violando o dever de isenção e transparência, ela deixa de ser uma ferramenta de medição e passa a ser uma ferramenta de manipulação. Em última análise, a conduta da Quaest — e a pesquisa Datafolha — pode, sim, ser questionada à luz do princípio da boa-fé, que rege toda relação baseada em confiança pública.

Entender como perguntas são feitas é, portanto, tão importante quanto saber as respostas. Em tempos de manipulação sutil, a verdadeira resistência está em pensar devagar — mesmo quando tudo à nossa volta nos empurra para decidir rápido. Pensar devagar, em tempos de urgência fabricada, é o verdadeiro ato de resistência.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

 

 

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