O Supremo Tribunal Federal lançou o livro “Desinformação: o mal do século”. É um segundo volume de uma série, com subtítulo “O futuro da democracia: inteligência artificial e direitos fundamentais”.
O título em si já é um grande exagero. Há muitos candidatos melhores para serem o mal do século no Brasil. Entre eles, o próprio ativismo judicial promovido pela corte. Outros bons candidatos: a censura, o desenvolvimentismo, os 1,61% sugados do PIB para o Judiciário mais caro do mundo, o colapso da educação, a corrupção por trás do Mensalão e do Petrolão, o tráfico de drogas e até a falta de saneamento básico.
A desinformação do livro contra a desinformação, portanto, já começa no título. Mas não fica aí. Abaixo, selecionei trechos onde o livro, com 36 autores, incluindo cinco ministros do STF, contraria a própria ciência.
STF vs. ciência
Uma das primeiras coisas importantes a serem entendidas sobre desinformação e fake news nas redes é que o impacto delas é pequeno, elas não têm grande poder de persuasão e é uma minoria de crédulos reincidentes que alimentam o nicho minoritário em que elas são publicadas e disseminadas. Tudo isso foi mostrado no artigo “Desentendendo os danos da desinformação online”, publicado pela revista científica Nature em 5 de junho de 2024.
O ministro Luiz Fux ignora os fatos publicados pela Nature em seu artigo-capítulo “Desinformação e economia comportamental”. Ele prefere usar um levantamento do Poynter Institute, que alegou que “quatro em cada dez brasileiros afirmavam receber fake news diariamente”. É uma fonte enviesada, pois é a entidade de acreditação de agências de checagem que lucraram com o programa de censura da Meta, que Mark Zuckerberg anunciou em janeiro que fecharia por causa de viés político dos checadores.
Enquanto isso, o artigo da Nature, com primeira autoria de Ceren Budak, da Faculdade de Informação da Universidade de Michigan, afirma que o conteúdo enganoso no Facebook ao qual usuários foram expostos em vídeo produzido por trolls russos antes das eleições americanas de 2016 era apenas 0,004% do conteúdo visto pelo público americano na plataforma. Ou seja, fake news são, na verdade, uma porção minoritária irrelevante do que se publica nas redes sociais. Na Internet como um todo, representam apenas 5,9% da audiência em notícias.
“As conclusões da pesquisa acadêmica são claras”, afirmam Budak e colegas. “A exposição à desinformação tem porcentagem baixa na dieta informacional das pessoas e está concentrada numa minoria”.
Essa conclusão dos cientistas também contraria o capítulo escrito pelo ministro José Antonio Dias Toffoli, em que ele afirma que as “novas tecnologias potencializaram a disseminação de desinformação, que pode colocar em risco a verdade factual, a democracia e outros valores fundamentais”.
O artigo da Nature é categórico: apresenta uma tabela de “Possíveis danos das redes sociais”, que lista entre os mecanismos de prejuízo “aumento da polarização” e dá seu veredicto para a plausibilidade disso: “não”. A resposta também é negativa para as propostas de que as redes sociais causariam “queda de confiança na imprensa” e “queda de confiança interpessoal e nas instituições” e deterioração da saúde mental.
O presidente do STF, Luís Roberto Barroso, também atenta contra a ciência em seu capítulo coescrito com Patrícia Perrone Campos Mello (não é a jornalista da Folha de S. Paulo). Barroso e Mello repetem a falsidade de que “a circulação de falsidades” está acontecendo “com maior engajamento”. Eles atribuem essas conclusões a “estudos”, mas não apresentam nenhuma referência; as citações na frase seguinte são, na maior parte, de textos dos próprios autores.
O estudo da Nature afirma, repito, que a exposição a conteúdos falsos é rara, concentrada em nichos extremos, e que os algoritmos tendem a favorecer conteúdo moderado, o que derruba a tese da bolha radicalizadora, adotada por muitos dos autores do livro — entre eles o ministro Fux, que falou em “câmaras de eco” e “bolhas de filtro”. Como dizem os cientistas, está muito longe de claro que o algoritmo do YouTube, por exemplo, radicalize as pessoas: pelo contrário, tende a sugerir conteúdo oposto às crenças radicais.
Figurinhas carimbadas do livro
O ministro Flávio Dino, que já mandou destruir livros, assina um capítulo sobre Inteligência Artificial com sua ex-funcionária, a advogada Estela Aranha. Obviamente, Dino e Aranha acham urgente regular a IA. É a sina de países de terceiro mundo que não sabem o que é inovação: não criam nada, regulam tudo.
Conheço Aranha de outros carnavais. Há quase um ano, quando Michael Shellenberger, David Ágape e eu publicamos a série de reportagens Twitter Files Brasil, ela foi a fonte favorita da imprensa pró-governo e pró-Moraes. Ela se apegou a um pequeno erro que somente Shellenberger cometeu — não eu no texto em português, nem Ágape —, e ignorou todo o resto.
Ignorou, por exemplo, que um dos consultores jurídicos sêniores do Twitter disse que as ordens de Moraes violavam a Constituição e o Marco Civil. Eu mesmo pedi diretamente, em público nas redes sociais, que Aranha comentasse o conteúdo das revelações, ela só permaneceu em um silêncio eloquente, alegando que nossas reportagens eram vazias de conteúdo “fático”.
A advogada também ficou em silêncio quando o advogado Rodrigo Marinho lhe perguntou o que achava do STF expandir seus próprios poderes em 2019, abusando do artigo 43 de seu Regimento Interno, começando um inquérito ilegal que este mês completou seis longos anos de idade. Às vezes o silêncio é muito eloquente.
Apesar de um convite, Aranha curiosamente se ausentou de uma audiência pública sobre nossas reportagens, na Câmara dos Deputados, em 16 de abril de 2024. Repito aqui o que eu disse aos parlamentares na audiência, o que também se aplica ao conteúdo do livro do STF:
“Senhores parlamentares, concidadãos: em lugar nenhum da lei brasileira está escrito que é crime produzir ou propagar “fake news”, “desinformação” ou “discurso de ódio”. Esses termos são termos particulares de uma determinada visão política que, não satisfeita que essas expressões não são tipificadas como crimes, planeja usar o aparato burocrático do país para fazer valer sua opinião. Isso, é claro, viola diversos princípios do Estado Democrático de Direito. É a lei que deve mandar, e não a opinião política em voga no momento entre setores influentes da imprensa, da academia e das instituições.”
Por falar no inquérito inconstitucional…
No livro desinformativo antidesinformação do STF, Dias Toffoli defende os abusos da corte sob a teoria da “democracia combativa”. Como explicou o advogado Hugo Freitas em artigo do ano passado, a teoria foi criada por Karl Loewenstein, um filósofo alemão, em 1937, “como uma técnica para derrotar o fascismo usando suas próprias armas”. Toffoli cita o filósofo em seu capítulo.
Freitas apontou que, embora usada por Alexandre de Moraes, a tese não era citada em suas decisões. O capítulo de Toffoli, portanto, vem como uma confirmação da adoção dessa tese pela dobradinha Toffoli-Moraes: o primeiro abriu o Inquérito das Fake News na Portaria 69, o segundo assumiu o papel de executor dos abusos.
O uso da tese já é uma confirmação de que alguns ministros do STF consideram o bolsonarismo uma forma de fascismo, ou seja, adotaram a tese da esquerda sobre o que é essa direita. Outras cabeças mais equilibradas diriam que se trata apenas de um movimento populista e nacionalista. Mas, como disse Barroso, a intenção é “derrotar o bolsonarismo”, e para isso está sendo usada uma teoria feita para derrotar o fascismo.
O problema da tese do alemão, como colocou Freitas, foi que ele próprio “admitia que a liberdade de expressão era a área ‘mais espinhosa’ da intervenção da democracia militante” (outro nome para a tese), porque “o ataque se apresenta sob o disfarce da crítica política legítima das instituições existentes”. Qualquer semelhança com o estado atual de censura e abuso no país não é mera coincidência.
Hoje mesmo, o desembargador Sebastião Coelho foi detido no STF. Ele estava indignado porque não o deixaram entrar na sessão em que uma turma da corte contendo Moraes e Dino decide se tornará réus os 34 acusados de tentativa de golpe de Estado em 2022, incluindo Bolsonaro. A justificativa para a detenção? “Desacato e ofensas” ao STF. O tribunal não é uma pessoa física que possa ser desacatada, mas isso pouco importa quando a lei do país não é a Constituição, mas a “democracia combativa”.
No livro do STF, Toffoli defende a abertura do Inquérito das Fake News. Ele alega que o contexto era proteger a corte de “ataques” (ou seja, meras ofensas verbais). “No início, a medida foi alvo de críticas e incompreensões”, escreveu o ministro. “Mas, com o aprofundamento das investigações, o inquérito passou a ter amplo apoio das entidades, da sociedade civil e da opinião pública”.
Truco! Não encontrei uma só pesquisa sobre a popularidade do Inquérito do Fim do Mundo (como chamou Marco Aurélio) em institutos de renome. O que existe são pesquisas sobre a popularidade de Moraes, à frente da “investigação”, e do próprio STF. Em dezembro de 2023, o Datafolha registrou uma queda na aprovação do STF de 31% para 27% em um ano. Até o fim de 2024, o PoderData registrou que a aprovação do Supremo caiu ainda mais, para 12%. Agora, 43% dos brasileiros consideram o trabalho do tribunal ruim ou péssimo, 34% consideram regular.
O Datafolha também mostrou que um terço dos brasileiros consideram a atuação de Alexandre de Moraes ruim ou péssima. Isso foi em março de 2024, antes do ousadíssimo banimento da rede social X por 40 dias.
Uma ausência gritante no capítulo de Toffoli é a censura contra a reportagem “O amigo do amigo de meu pai”, da revista Crusoé, a primeira vítima do inquérito. A reportagem, que acusa Toffoli de ter este pseudônimo na lista de propina da Odebrecht nos esquemas revelados pela Lava Jato, não se revelou fake news, mas true news. De fato, o silêncio às vezes tem uma grande eloquência.
Para resumir minha resenha do livro do STF: evite, ou a leitura pode desinformar o leitor profundamente.
Erratum: uma versão anterior deste texto continha um erro a respeito da quantidade de conteúdo falso consumido no Facebook segundo o artigo da Nature. O erro não prejudica o argumento e foi corrigido.