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Querem Apagar o Incêndio com Querosene: A Armadilha de Eleger Juízes

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No México, a reforma judicial proposta por Andrés Manuel López Obrador e levada adiante por sua sucessora, Claudia Sheinbaum, inaugurou um experimento perigoso: a eleição direta de juízes, inclusive da Suprema Corte. Sob o pretexto de combater a corrupção, o país passará a escolher magistrados por voto popular, em um modelo já comparado ao da Bolívia — e a certos distritos dos Estados Unidos classificados como Judicial Hellholes. A medida é saudada por setores que criticam o ativismo judicial, mas representa, na verdade, o agravamento do problema que promete resolver.

Judicial Hellholes — expressão cunhada pela American Tort Reform Foundation — são jurisdições americanas em que o sistema judicial se tornou notoriamente imprevisível, parcial ou capturado por interesses específicos, como grandes escritórios de advocacia, sindicatos, grupos de pressão ou a opinião pública volátil. Em muitos desses condados, os juízes são eleitos por voto popular e, para se manterem no cargo, tendem a favorecer determinadas causas, ampliar artificialmente indenizações e decidir com base em conveniências políticas ou eleitorais. A justiça deixa de ser imparcial e passa a ser instrumentalizada por quem sabe manipulá-la melhor.

A crítica legítima ao comportamento ativista de juízes não conduz, como corolário lógico, à ideia de que eles devem ser eleitos. Se o magistrado interpreta a Constituição como se fosse legislador, o erro não está na sua falta de mandato popular, mas no abuso do seu ofício técnico. A função judicial não é política: é jurídica. Juízes não existem para agradar maiorias, mas para contê-las quando violam a liberdade individual. Sua missão é guardar o texto da lei, não reescrevê-lo sob aplausos.

A República não é um regime de vontades: é um regime de limites. Ao contrário da lógica democrática, que opera pela deliberação da maioria, o modelo republicano exige instituições de contenção — entre elas, um Judiciário independente, não subordinado ao apelo das urnas nem ao barulho das ruas. Juízes eleitos rompem com essa arquitetura: tornam-se reféns do eleitorado, dos partidos e dos financiadores de campanha. E, como comprova a experiência americana, os resultados podem ser desastrosos.

Imagine, por exemplo, a eleição direta de juízes no Brasil. Um advogado militante se lança candidato a juiz de primeira instância com forte apoio de movimentos sociais e partidos de esquerda. Durante a campanha, promete “justiça social”, “combate aos ricos” e “reparação histórica” como eixos de sua futura jurisdição. Seu marketing eleitoral se apoia em pautas identitárias, discursos inflamados contra o “punitivismo seletivo” e promessas de que, no seu juízo, não haverá espaço para o que chama de “neutralidade opressora”.

Após eleito, conduz audiências como se estivesse em comício. Suas decisões se tornam instrumentos de engenharia social — flexibiliza a lei para proteger grupos aliados, ignora jurisprudência consolidada em nome de “valores superiores” e utiliza a linguagem jurídica como plataforma de militância. Ganha notoriedade na imprensa, acumula seguidores nas redes e, ao fim do mandato, candidata-se a deputado federal. O cargo de juiz foi apenas o primeiro degrau da escalada ao poder político.

Como em “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand, quando os idealistas da Fábrica 20th Century decidiram que os salários seriam pagos segundo a necessidade e o mérito decidido por votação, também aqui, no altar da justiça, cogita-se entronizar o mesmo princípio — o da razão silenciada pela urgência das massas. Não será mais a lei que falará nas sentenças, mas o clamor dos ressentidos, a voz do grupo, o marketing da compaixão. E como naquela fábrica, onde cada homem se via forçado a viver pelos desejos alheios e a implorar por seu próprio pão, veremos juízes transformados em intérpretes da turba, não da Constituição; tribunais convertidos em palcos de expiação moral, não de contenção legal. A justiça, então, deixará de ser cega — apenas para tornar-se surda à razão.

Nos anos seguintes, já como parlamentar, reivindica sua autoridade como ex-juiz “do povo” e propõe projetos para ampliar o controle popular sobre o Judiciário, sob a retórica da democratização, mas com a real intenção de capturá-lo ideologicamente. Seu percurso se torna exemplo para uma nova geração de juízes-candidatos: usar a toga como palanque e a jurisdição como propaganda. A fronteira entre julgar e legislar desaparece. E, com ela, desaparece também a independência judicial.

No Brasil, o artigo 5º da Constituição consagra um rol de direitos fundamentais que funcionam como barreiras intransponíveis contra abusos do Estado. Esses direitos, por força do artigo 60, § 4º, IV, são cláusulas pétreas. Isso significa que nem mesmo o poder constituinte derivado pode suprimi-los — e certamente não pode relativizá-los por meio de votos ou maiorias. O juiz, nessa estrutura, é peça essencial do mecanismo de contenção. Sua função contramajoritária não é um defeito: é uma virtude institucional.

Defender a eleição de juízes como antídoto ao ativismo é ignorar a natureza do problema. Se o juiz interpreta fora dos limites da lei, é preciso contê-lo — com técnica, com presunção de liberdade, com respeito aos direitos fundamentais e com fidelidade ao texto. Transformá-lo em político é oficializar o desvio. É institucionalizar o ativismo. A independência judicial não será salva pela urna, mas definitivamente destruída por ela.

O caminho mexicano está errado. Ele não corrige a politização da justiça; apenas a desloca, das cúpulas para as campanhas. E se há algo que a história já nos ensinou é que não se apaga incêndio com querosene. A América Latina costuma ser o cemitério das ideias fracassadas. Que o Brasil não se junte, mais uma vez, ao enterro.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum.

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1 COMENTÁRIO

  1. Estou de acordo com a visão do articulista, em quase tudo. A eleição popular de juízes da Suprema Corte é um grande erro. Poderia se dizer que é um erro até para juízes de cortes inferiores, exceto…as cortes distritas locais. O tema é mais complexo do que parece a proposição mexicana, de solução linear que busca o controle externo do judiciário por aquele que paga a conta e é o maior interessado na contraprestação jurisdicional. A visão deve ser sistêmica, envolvendo questões como o rito do Direito, se consuetudiário ou positivista/formalista, e a abrangência das decisões locais, base absolutamente maior dos contensiosos, já que acolhe 70% talvez 80% dos casos entre particulares.
    Vamos direto ao caso dos juízes distritais, citados “en passant” pelo articulista, no caso dos condados norte-americanos. A Constituição dos EUA versa sobre a aplicação do Direito Consuetudinário para assuntos com alçada de até USD 20,00, o que deve ter sido corrigido pela inflação desde 1776/1789. Certamente que um tema que ultrapasse a jurisdição judicial, seja por abranger legislação estadual ou federal deve ser encaminhada para tais instâncias.
    Nesse sentido, é o que propomos no que tange à eleição de juízes distritais em uma possível nova federação, plena, no Brasil. Juízes não são deuses, mas assim se julgam porque, tal como o Ministro Barros declarou certa feita, “dever mais satisfação a ninguém após a investidura da toga”é o que acontece com a maioria absoluta dos magistrados neste País.
    Pois bem, esses juízes distritais, na quantidade necessária de acordo com a capacidade e atendimento em cada distrito judicial, seja em grandes cidades,com vários, ou em microregiões com certo número de pequenas cidades, podem ser eleitos a cada dois ou três anos, somente pelos povo do próprio e respectivo distrito. Mas, diferentemente do que ocorre nos EUA, e talvez lá seja uma falha, os candidatos a juízes têm de ser bacharéis em Direito e serem formados na Escola da Magistratura, não podem nunca ter pertencido a partidos políticos, nem ter participado do Poder Executivo ou Legislativo, ou seja, carreira pura. E não poderão, depis disso, concorrer a cargos eletivos ao Executivo e Legislativo. Parece drástico, mas há carreiras que exigem dedicação e carreira exclusiva. Um bom juiz distrital pode ser eleito indefinidamente, e pode, se desejaar, ascender na carreira para outras esferas, e sim, chegar ate ao futuro Tribunal Federal Constitucional (TCF). Os magistrados do TCF poderão ser eleitos dentro do Colégio da Magistratura, formando por juízes dos tribunais constitucionais estaduais, para mandatos com no máximo 12 anos.
    Perceba-se que o que estamos propondo é a busca de soluções que vão desde a eliminação de tantas instâncias no Judiciário, bem como a reconfiguração da Corte Federal, esta que deve ser apenas constitucional. Só chegarão nela processos que passarem pelos juízes federais e pelas Câmara Federais de Apelação.
    Desta forma, considerando que estados autossuficientes passarão a legislar sobre a maioria das matérias que diz respeito à vida dos cidadãos, inclusive Direito Processual, bem como, seu próprio Judiciário, além de outros temas como tributos e administração da Saúde, Educação, Segurança Pública etc., a justiça estará mais próxima do seu próprio ideal. Obviamente, que tudo terá de ser orientado por uma Constituição essencialmente principiológica, plenametne autoaplicável, eliminando-se a submissão da mesma às regulamentações e legislçaão complementar, como atualmente. Até inventaram o Mandado de Injunção na Constituição de 1988, mas só funciona se for da vontade do magistrado da Suprema Corte. Eu sei, pois fui vítima de tal discricionariedade ao invocar tal dispositivo em 2018, para garantir o meu direito a ser candidato independente à Presidência da República, negada monocraticamente (por razões de segurança pessoal, não citarei o miinistro que fez isso, pois não temos mais Estado de Direito, apenas o Direito do Estado).
    Portanto, o tema não pode ser finalizado com base no erro que os mexicanos vão cometer, ou nas poucas falhas do sistema norte-americano em relação aos juízes eleitos na base comunitária. A evolução se dá em aproveitar as boas ideias, não copiando as falhas que sempre existem em qualquer processo. É o caso do feederalismo pleno que estamos propondo através do Movimento Ação Federalista pela Reestruturação do Brasil, o que inclui a reorganização dos Poderes da República e das esferas de governança, alinhando-se com os novos tempos e exigências de um povo cada vez mais esclarecido. Não é à toa que as velhas oligarquias, estatólatras e ideólogos de modelos ultrapassados como o socialismo, querem controlar as redes sociais e a informação que circula pela internet. Diante deste novo mundo, as estruturas têm de ser revistas. E uma delas é, sem dúvida nenhuma, o Poder Judiciário, mas com coragem de avançar, preservando os ditames principiológicos do Direito da Justiça.

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