Desde que uma juíza condenou o humorista Léo Lins a oito anos de prisão, um debate interno à direita, feito hoje no programa Alive de Claudio Dantas, diz respeito à própria direita ter dormido no ponto. Essa falha teve até o apoio de alguns parlamentares críticos da esquerda, mas que votaram a favor da Lei Antipiadas, que pavimentou o caminho para o desastre.
A mesma coisa está acontecendo quanto ao cotismo estrutural — a obsessão da esquerda de destruir a meritocracia e o tratamento igual perante a lei em nome de ajudar negros, mulheres e minorias sexuais.
Na última terça (3), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou sem grandes sinais de oposição forte o PL 1.958/2021, que insiste nas cotas aumentando para 30% as vagas reservadas por critérios identitários raciais e étnicos em concursos públicos.
“Temos poucas mulheres ainda, temos poucos negros ainda, temos quase que nenhum indígena”, justificou Lula. É a mesma justificativa de dever de cuidado da criminalização das piadas, também assinada por ele, e dos planos de censura nas redes sociais crescendo no STF.
Como diz o pensador Thomas Sowell, a meta final das cotas, que é a igualdade de resultados, só é possível em um horizonte utópico. Por ser uma violação do tratamento igual, os próprios proponentes entendem o risco moral, por isso alegam sempre que é uma solução temporária. Mas, como a meta é impossível, é um temporário que se torna eterno.
Sei que a oposição às cotas está fraca porque falei contra cotas identitárias em uma audiência do Senado, em 2023 (veja o vídeo aqui), e notei que, com honrosas exceções, uma presença rarefeita de contrários dos partidos de direita. Parece que uma das grandes confusões poderia ser que se opor à destruição da meritocracia e do tratamento igual em nome de ajudar negros e mulheres é se opor aos mesmos negros e mulheres, um absurdo completo. Negros, mulheres e LGBT, como todos os outros grupos, são ajudados pela meritocracia, não atrapalhados — e temos referências científicas para afirmar isso.
Esse autoritarismo consiste em sempre interferir para, sob a desculpa da igualdade, estabelecer que uns são mais iguais que os outros. Por exemplo, no ano passado, quando ocorreu a tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul, a ministra Anielle Franco propôs que o Estado discriminasse por cor na hora de entregar insumos de emergência. Não creio que preciso explicar por que isso é repugnante. Ainda assim, muitos não veem a analogia disso com as cotas raciais, mesmo após o escandaloso caso do Instituto Federal do Pará, que queria até medir crânios e narizes para decidir quem merece uma vaga.
A colaboração dos pseudoliberais
Certa vez, em 2020, o economista brasileiro Rodrigo Zeidan, que mora na China e alega ser um liberal, defendeu as cotas raciais em um fio do Twitter.
A qualidade do liberalismo de Zeidan pode ser aferida de outras declarações públicas nas redes sociais: ele já disse que aborto “não é um assunto ‘complexo’”, que “o Novo é um lixo”, elogiou a ditadura chinesa porque é possível comprar um vibrador em loja de conveniência “sem culpa católica” (pornografia na China pode levar à prisão perpétua), etc. Chamá-lo de “pseudoliberal” seria até um elogio.
Mas pessoas com credenciais liberais com mais crédito que as de Zeidan insistem em defender cotas identitárias, geralmente as raciais, mesmo com a flagrante contradição entre essa política e o valor liberal basilar da igualdade de tratamento perante leis e normas.
Havia um problema na defesa que Zeidan fez das cotas raciais, contudo. Ele prometeu que provaria que os oponentes das cotas estão errados “com ciência”. No meio do texto, contudo, ele teve de reconhecer que “os alunos de direito via cota têm desempenho pior que os outros alunos, 7,68%”. No mínimo, isso mostrava um cenário mais complexo do que o que ele tentou pintar com outras estatísticas citadas antes, como “alunos de direito que entraram por cotas têm 33% maior chance de passar no exame da OAB”.
O que dizem as evidências?
O tratamento igual perante a lei é um valor moral aplicado à política, portanto, nenhuma quantidade de dados empíricos pode derrubá-lo. Quem não adere a esse valor, contudo, tenta provar pela via das consequências (já que seria difícil provar pela via dos princípios) que as cotas identitárias são uma coisa boa.
Uma das defesas mais comuns das cotas é completamente circular: cotas “funcionariam” porque o grupo contemplado por elas de fato sobe em frequência nas instituições ou empregos em que são aplicadas.
Imagine que um vendedor de bolachas quer testar se a farinha de arroz é um bom ingrediente novo nas bolachas. O argumento acima a favor das cotas seria como afirmar que a medida de sucesso da farinha de arroz é a quantidade de farinha de arroz no produto.
A medida de sucesso da bolacha seria um aumento de vendas, ou pelo menos uma não-redução nas vendas se o ingrediente reduz custos. Qual seria a medida de sucesso de cotas raciais em, por exemplo, universidades? Ela é dada pela função que a Constituição estabelece para as universidades: pesquisa, ensino e extensão.
Então, se os dados de Zeidan são incertos a respeito dos resultados das cotas para o ensino, então não se pode afirmar sucesso.
Vamos a outras fontes. Um estudo sobre as cotas nas universidades públicas publicado em 2021 no American Economic Journal, com autoria dos economistas Orhan Aygün e Inácio Bó, concluiu que as cotas “podem rejeitar estudantes de alto desempenho de minorias enquanto aceitam estudantes de baixo desempenho da maioria”.
Há também um problema de competição entre categorias identitárias. Um estudo de 2020 sobre cotas para mulheres em casas legislativas da Índia concluiu que as vagas reservadas para mulheres reduziram a representação de grupos minoritários, incluindo a casta dos intocáveis (que também é beneficiária de cotas há 75 anos, numa política que também alegadamente era “temporária”).
Já uma metanálise de pesquisadores da Universidade Centro-Europeia, que incluiu mais de 50 estudos sobre cotas de gênero, encontrou resultados conflitantes. Até mesmo o argumento circular não serviu, porque as cotas para mulheres não resultaram em aumentos significativos de representação feminina em empresas.
Repito: tratamento igual é uma questão de princípio que não pode ser derrubada com dados da experiência. Mas até mesmo no campo das consequências, as cotas identitárias geram resultados muito questionáveis.
Por que tanta briga para enfraquecer um valor fundamental da democracia? Minha desconfiança é que isso resulta do fracasso da agenda do socialismo marxista na esquerda, desde a queda do Muro de Berlim. Na falta de plausibilidade de sucesso para a utopia da igualdade de resultados econômicos com um fim do “capitalismo”, recorreram a outra utopia de igualdade de resultados em marcadores sociais que enfraquece os valores da liberdade por outras vias. O nome dessa utopia é identitarismo.