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O Juiz dos Próprios Limites: Quando o Supremo Decide Não Cumprir a Constituição

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A Constituição brasileira estabelece que os Poderes da República são independentes e harmônicos entre si. Mas e se um deles resolver não reconhecer a legitimidade do outro? E se o Supremo Tribunal Federal, diante de uma decisão da Câmara dos Deputados tomada com base em dispositivo constitucional claro, simplesmente decidir não cumprir? Essa possibilidade, cada vez mais plausível, acende um alerta: há um limite para a autoridade do STF ou ele próprio é quem decide até onde pode ir?

A hipótese ganha corpo com a recente aprovação, pela Câmara, da sustação da ação penal que envolve Alexandre Ramagem, Jair Bolsonaro e outros denunciados, nos termos do art. 53, §3º da Constituição. O texto é direto: recebida a denúncia, a Câmara pode sustar o processo, por maioria absoluta. Não há ambiguidade. A medida, aprovada por 315 votos, representa a aplicação explícita do art. 53, § 3º da Constituição, mas já foi publicamente desafiada por membros do Supremo, que indicaram — por meio de interlocutores — que a Corte poderá simplesmente ignorá-la. O gesto da Câmara foi classificado por setores da imprensa como uma “confrontação” ao STF, ainda que a base legal esteja expressamente prevista no texto constitucional.

Mas já se antecipa a dúvida: o Supremo aceitará a decisão? Ou alegará que ela não se aplica aos corréus não parlamentares? E, se alegar, com base em quê? Essa é precisamente a estratégia que já começa a se desenhar: segundo a reportagem do Estadão, o STF estuda manter a ação penal contra os réus não parlamentares, sob a justificativa de que a prerrogativa da Câmara não os alcançaria. Mas essa leitura ignora o fato de que a Constituição não impõe tal limitação, tampouco condiciona a sustação a critérios de vínculo funcional com o Legislativo.

A Constituição não autoriza essa distinção. O artigo 53 não condiciona a sustação à homogeneidade do polo passivo, nem restringe seus efeitos a réus com mandato. Ao agir assim, o Supremo não estaria interpretando o texto — estaria reescrevendo-o. E não por emenda constitucional, nem por força do Congresso, mas por meio de uma construção jurisprudencial feita dentro dos próprios muros da Corte. Uma leitura que transforma o guardião em legislador e o intérprete em autor.

É verdade que o Supremo ainda não decidiu. Mas o simples fato de se cogitar que ele possa ignorar uma norma constitucional expressa, emanada da vontade parlamentar, já revela algo fora do lugar.

A reação institucional já está em curso. A Câmara enviou ofício ao STF e à PGR solicitando a suspensão do trâmite processual, mas até agora não houve resposta formal. O silêncio já sugere a disposição de ignorar o comando constitucional, deslocando o debate do campo jurídico para um embate político entre Poderes. Em uma República, nenhuma autoridade pode dispor sobre os limites dos demais Poderes por vontade própria. Quando um tribunal interpreta a Constituição contra o que ela afirma literalmente, o que se rompe não é apenas o texto — é o equilíbrio institucional.

Se o STF resolver dizer “não” à Câmara, mesmo diante do que diz a Constituição, ele estará declarando mais do que a irrelevância de um dispositivo. Estará declarando a irrelevância do próprio Legislativo. Estará afirmando, sem dizer, que somente suas convicções importam. Que nem mesmo a vontade constitucional do Parlamento tem força se não coincidir com a vontade da Corte. E, nesse ponto, a separação de Poderes vira uma abstração.

A questão, então, deixa de ser apenas jurídica. Torna-se existencial para o regime republicano. O que fazer quando um Poder se torna juiz dos próprios limites? Quando a instância que deveria aplicar a Constituição decide substituí-la? Quando o cumprimento do texto depende da disposição subjetiva de quem o interpreta, e não da autoridade democrática de quem o escreveu?

Esse dilema não é novo na história constitucional. Em Marbury v. Madison (1803), a Suprema Corte dos Estados Unidos afirmou seu poder de revisar leis à luz da Constituição — mas fez isso justamente para proteger o texto, não para reescrevê-lo. O célebre voto de John Marshall reconheceu que a Constituição vincula até mesmo os tribunais. Ao agir fora desses limites, não se exerce jurisdição — comete-se usurpação. Se a Corte americana estabeleceu os limites do Judiciário para garantir a supremacia da Constituição, é paradoxal ver, hoje, a ideia de supremacia judicial servir para contorná-la.

Como ironizou um parlamentar da base governista, a sustação do processo penal foi tratada como se tivesse “fundamento constitucional”. O que se pretendia como crítica, no fundo, revela uma verdade inconveniente: trata-se, sim, de uma prerrogativa prevista expressamente no texto constitucional — e desconsiderá-la por critérios discricionários significa estabelecer que o STF pode invalidar atos congressuais mesmo quando estritamente constitucionais. É nessa hora que a democracia republicana corre o risco de ser vencida pelo arbítrio togado.

Esse risco se amplia quando se observa que não é apenas a Câmara que tenta exercer suas competências constitucionais diante do Judiciário. No Senado, outro projeto ganhou corpo: a possibilidade de transferência de condenados do regime fechado para o semiaberto ou aberto, inclusive em penas mais altas, como as de 11 a 17 anos aplicadas pelo STF nos casos do 8 de Janeiro. A proposta, articulada pelo presidente da Casa, prevê a reclassificação das penas conforme critérios legais já previstos no Código Penal, o que permitiria, por exemplo, o trabalho externo ou a prisão domiciliar noturna.

Também aqui, a reação antecipada já sugere resistência. Se, mesmo aprovada e sancionada, a norma for ignorada ou neutralizada pelo Supremo, não será apenas uma prerrogativa formal que estará sendo violada — mas a própria lógica da separação de Poderes, substituída por um modelo em que a Constituição só vale se o STF assim permitir.

Convém ainda desfazer uma confusão deliberadamente alimentada por narrativas políticas: a decisão da Câmara não é ato de anistia. Trata-se de uma prerrogativa prevista no art. 53, § 3º da Constituição, para suspender o andamento de processo criminal contra parlamentar — e, por extensão lógica e textual, contra os demais réus no mesmo processo. Tratar a sustação como se fosse absolvição é manipular os termos do debate para deslegitimar a função constitucional do Legislativo.

Mas o problema não se limita à distorção conceitual. O risco maior está no precedente institucional que se abre quando a Constituição é voluntariamente ignorada. Se hoje o Supremo ignora o texto para atingir adversários, amanhã poderá fazê-lo para proteger aliados. A Constituição, quando relativizada, perde valor como escudo universal — e passa a servir apenas como arma ocasional.

O devido processo legal, a legalidade, a ampla defesa e o contraditório — todos assegurados no artigo 5º — não existem para garantir a vontade da maioria, mas para proteger cada um de nós, individualmente, contra o avanço do Leviatã. Quando o Judiciário atropela a Constituição sob o pretexto de “proteger a democracia”, o que ele faz, na prática, é deixar o indivíduo sem abrigo. E um Estado que julga poder desrespeitar o texto para defender ideias maiores é, justamente, o tipo de Estado contra o qual o artigo 5º foi escrito.

A Constituição de 1988 não confere ao STF o poder de recusar o cumprimento de uma decisão do Congresso tomada nos termos da própria Constituição. Tampouco autoriza a Corte a limitar prerrogativas parlamentares com base em interpretações extensivas, preferências morais ou argumentos de conveniência. O que o texto afirma deve ser respeitado. Interpretar não é suprimir. Garantir a Constituição não é remodelá-la.

Caso o Supremo escolha desobedecer a Constituição, mesmo que envolto em linguagem técnica e votos eruditos, terá ultrapassado o papel de guardião para assumir o de soberano. E soberanos não convivem com a República — a sufocam. O Brasil precisa reencontrar, dentro dos marcos da Constituição, o equilíbrio entre os Poderes — antes que a supremacia interpretativa de um deles acabe por esvaziar o papel dos demais.

Diante desse cenário, talvez seja hora de resgatar, com clareza, a doutrina esquecida da departamentalização dos Poderes. Segundo essa teoria, consagrada no constitucionalismo republicano e defendida por nomes como Jefferson e Madison, cada Poder tem o dever de interpretar a Constituição dentro de sua esfera de competência — sem subordinação hierárquica aos demais. O Congresso interpreta o texto para legislar e exercer suas prerrogativas, o Executivo para governar e o Judiciário para julgar.

O que essa concepção recusa é a ideia de um Poder soberano sobre os outros. A Constituição brasileira, embora silenciosa sobre o tema, admite esse arranjo: a função de “guarda” atribuída ao STF não elimina a autoridade interpretativa dos demais Poderes no exercício legítimo de suas atribuições. Quando o Judiciário extrapola essa moldura e se arroga o direito de revisar, neutralizar ou ignorar atos normativos que não lhe cabem, rompe-se o pacto republicano. Reafirmar a departamentalização, nesse contexto, não é dividir a Constituição — é protegê-la do monopólio. A República exige intérpretes que se contenham, não supremacias que se imponham.

Nota final: este texto não pretende julgar o mérito da decisão tomada pela Câmara dos Deputados, tampouco defender os envolvidos na ação penal mencionada. Não escrevo como bolsonarista — pois sou critico em vários aspectos —, nem como defensor de qualquer grupo político. Escrevo como advogado comprometido com a Constituição. O que está em jogo aqui não é quem está sendo acusado, mas quem decide o que a Constituição permite. O alerta é institucional, não ideológico. Porque, quando os direitos deixam de valer para os outros, em breve deixarão de valer para nós.

*Leonardo Corrêa — Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, Fundador e Presidente da Lexum.

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