A Universidade de Brasília (UnB), instituição federal de ensino superior, foi palco de um teste da aplicação de novos limites da ideologia identitária sobre a expressão na semana passada.
Uma aluna foi presa em flagrante na terça (11) por, após se deparar com um indivíduo de sexo natal masculino dentro de um banheiro feminino, ter reagido dizendo que ele não deveria estar ali, por não ser mulher, e xingando-o com um termo pejorativo para gays.
A própria Polícia Militar do DF está chamando o incidente de “suspeita de injúria racial”. Porém, isso nada tem a ver com a cor do alvo do insulto. Como diz o relatório policial, a característica saliente da suposta vítima é ser “não binária e sem nome social” e “estar em processo de hormonização”, e sua alegação sobre a natureza criminosa do insulto é que foi “homofobia”.
A detida relatou à PM que estava com as calças abaixadas quando a pessoa de aparência masculina entrou no banheiro. Ela devolveu a acusação de homofobia com outra acusação de injúria mais genérica, contra uma pessoa que acompanhava a suposta vítima e a teria xingado de “vadia” em uma rede social. O autor do insulto foi autuado e seu celular foi apreendido.
Uma coisa é clara: a detenção da mulher não estaria acontecendo se não fosse pelo ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF).
Também foi na UnB que, em dezembro de 2022, um indivíduo alto e barbado foi flagrado por uma mulher no banheiro feminino do Restaurante Universitário do Campus Darcy Ribeiro. Ele foi filmado tentando intimidar a mulher, bem menor que ele: “não há nada que me impeça de meter a mão na tua cara”, disse ele, descontente por ter sido chamado por ela de “um cara”.
Em vez de defender a mulher, o Diretório Central de Estudantes da UnB disse na época em nota que “repudia a atitude da aluna” e afirmou que o barbado com atitude intimidatória merecia “acolhimento” por ser “vítima de transfobia”. Pelo visto, ele não sofria o suficiente com seu sexo de nascimento para afeitar-se.
Os defeitos da tradição nacional exacerbados pelo ativismo judicial
Desde 1830, na letra da lei, o Brasil se distancia de outros países com melhor tradição de respeito aos direitos individuais por criminalizar a “injúria”, ou seja, meras palavras de insulto com efeitos “danosos” completamente subjetivos sobre os alvos.
Enquanto o humorista britânico Rowan Atkinson (o Mr. Bean) pode dizer que em seu país não costumava existir um “direito de não ser ofendido”, Chico Anysio nunca poderia ter dito o mesmo. Léo Lins, que aguarda recurso após ter sido condenado a oito anos de prisão por contar meras piadas, também não pode elogiar o ordenamento jurídico brasileiro no que diz respeito à liberdade de expressão.
Após a redemocratização, com a Constituição de 1988 promulgada, pudemos desfrutar de um alívio temporário, um momento de recuperação da ressaca causada pela censura aplicada pela Ditadura Militar. Mas logo voltaríamos a beber, e a cachaça da expansão da “injúria” estava servida.
A expansão aconteceu, mas não é culpa da Constituição. Ela não previa, por exemplo, que sua prescrição da criminalização do racismo incluísse a “injúria racial”. Muito menos que o Supremo Tribunal Federal (STF) expandisse a definição de racismo com ativismo judicial para incluir outros grupos humanos que não são raças no “direito de não ser ofendido”.
Ser negro não é uma moda ideológica
Ainda que você concorde com criminalizar a “injúria racial”, é difícil justificar a manobra do STF a partir de 2019, que foi essencialmente alegar que os rótulos identitários do movimento LGBT são suficientemente análogos à raça, se não idênticos. O STF está criando leis sob a alegação de apenas interpretar sua constitucionalidade.
Ser negro, por exemplo, é uma característica ligada a uma herança milenar continental africana, de onde todos nós viemos. Há exceções que provam a regra, como os negros aborígenes australianos, que retiveram nossas características ancestrais. A pele melânica é parte indelével da genética, associada a manifestações culturais que muitos também consideram indeléveis para suas identidades.
Por outro lado, ser “não binário” (mais comumente grafado “não binárie”, trazendo embutido o atentado à gramática que chamam de “linguagem neutra”) é uma invenção recentíssima, popularizada nos anos 2010 e associada ao progressismo identitário. Não há indício nenhum de que a “não binariedade” tenha âncoras objetivas como ser negro tem. Inexiste conservador não binário, mas existem conservadores gays.
Há indícios substanciais de que a autodeclaração “não binária” é um fenômeno ideológico e uma moda que se iniciou no mundo desenvolvido. Por lá, segundo evidências recentes, a moda está passando. Entre jovens universitários americanos, desde 2020, o número de jovens que se declaram “não binários” caiu vertiginosamente. Uma identidade que aparece e desaparece tão ao sabor dos ventos merece ser protegida por lei tanto quanto a etnicidade?
Outra alta corte brasileira, o STJ, parece crer que sim, pois permitiu a inclusão de “não binárie” no campo “sexo” de documentos de identificação. Sexo, a propósito, é tratado como diferente de “gênero” pela mesma ideologia identitária de onde veio a moda. Exceto quando é conveniente para se impor pela via do ativismo judicial.
A vez dos baixinhos
Suponha que amanhã surja uma nova moda ideológica segundo a qual a estatura não é uma questão de fita métrica, mas de autodeclaração. De forma que uma pessoa baixa possa se declarar alta ou mediana em estatura.
Montanhas-russas com certas características, torres de queda livre e brinquedos giratórios de alta aceleração lateral têm requisitos mínimos de altura, estabelecidos por órgãos internacionais, pela segurança de quem entra nesses brinquedos. É uma questão de física e antropometria. Mas não subestimemos a criatividade humana para inventar opressões onde elas não existem, por pura autoindulgência.
Crianças e baixinhos adeptos dessa nova ideologia que queiram andar em atrações de parque de diversão, mas sejam barrados pela baixa estatura, poderão alegar que isso é discriminação injusta e acionar o STF via algum partido de extrema esquerda para que os ministros os incluam à força, na canetada, e punam por “injúria racial” quem disser que são “tampinhas”?
Pode ser engraçado, mas é também trágico, pois é para esse estado de coisas que estamos caminhando. O Brasil é um país autoritário, tocado por autoridades que tateiam o quanto podem para achar mais motivos para calar cada vez mais bocas.
Temos um grande trabalho pela frente para restaurar a liberdade de expressão ao estado que ela tinha logo após a redemocratização, e fazê-la avançar para níveis mínimos em outros países, mas que nunca existiram por aqui.
