Claudio Dantas
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É prerrogativa do STF evitar um golpe, o Tribunal teria esse poder?

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A ideia de que uma Corte de Justiça teria impedido um golpe de Estado se tornou um refrão recorrente no discurso político e na imprensa. Nela, os ministros assumem o papel de heróis, o texto constitucional se converte em escudo e a democracia é salva por votos monocráticos, inquéritos sigilosos e decisões liminares. A imagem é sedutora — mas profundamente equivocada. Não apenas por exagerar as circunstâncias, mas por contrariar um princípio elementar do constitucionalismo: nenhum tribunal pode deter um golpe sem ultrapassar os limites da função que lhe foi confiada.

Golpes de Estado não são fantasias discursivas. São atos concretos de ruptura, planejados e executados por quem detém força real: tanques, armas, cadeias de comando. Exigem controle territorial, capacidade de intimidação, neutralização de Poderes e adesão institucional. Em qualquer república moderna, esse poder repousa exclusivamente nas Forças Armadas. Se um golpe se consuma, é porque a hierarquia militar aderiu; se fracassa, é porque não houve apoio suficiente para sua deflagração. Em nenhum cenário plausível, o impedimento de um golpe está nas mãos de juízes. E mais: se estivesse, já não se trataria de uma república, mas de uma teocracia togada.

A função de um tribunal é julgar conforme a Constituição. Seu instrumento é o direito; seu campo de atuação, o processo. O Judiciário não comanda batalhões, não patrulha ruas, não controla quartéis. Quando se afirma que um tribunal “evitou um golpe”, presume-se que tenha atuado fora de seus meios legítimos — o que significa, em essência, que usurpou funções que não lhe cabem. Evitar um golpe não é tarefa de juízes, mas de instituições armadas, lideranças políticas e coesão social. Se a Corte se apresenta como responsável pela salvação da ordem democrática, então ela própria já ultrapassou a linha que separa o julgamento da intervenção.

Há quem diga que o Supremo reagiu a uma ameaça real, e que isso justificaria sua expansão interpretativa. Mas mesmo ameaças reais não autorizam a violação das garantias constitucionais. Democracias não sobrevivem pela exceção erigida em método. E há um agravante: não há, até hoje, qualquer evidência concreta de que um golpe estivesse em vias de se consumar. Houve, sim, delírios, reuniões esparsas, discursos radicais e teorias conspiratórias. Mas tudo isso carecia do elemento indispensável: adesão das Forças Armadas. Sem tropa, sem cadeia de comando, sem ordem executável, não há golpe. Há devaneio.

O episódio de 8 de janeiro é ilustrativo. Se o Supremo tivesse poder para impedir um golpe, teria sido capaz de evitar a invasão de sua própria sede. Mas não foi. O plenário foi vandalizado, os símbolos da Justiça foram pisoteados, e tudo ocorreu à revelia da Corte. A imagem do edifício devastado expõe a verdade institucional: o Judiciário é vulnerável, não invencível. Depende, como todas as instituições civis, da proteção de terceiros. Se não pode se defender de uma turba, como poderia resistir a um levante armado? A resposta é simples: não pode. E não deve fingir que pode.

Atribuir a uma Corte o mérito por impedir um golpe que não houve é construir uma mitologia política para justificar intervenções que, em contexto de normalidade democrática, seriam intoleráveis. Bloqueios de perfis em redes sociais, censura prévia a veículos de imprensa, perseguição judicial a opositores, criminalização de discursos — tudo isso passou a ser reinterpretado como se fosse parte de uma cruzada salvadora. Trata-se de uma inversão perversa: o Direito deixa de ser limite do poder e passa a ser seu instrumento plástico, moldado ao sabor de narrativas convenientes.

Mais grave ainda é a tentativa de reclassificar vândalos como golpistas, com o fim de sustentar retroativamente a ideia de que havia uma insurreição em curso. O caos de 8 de janeiro foi criminoso e vergonhoso, mas não teve comando unificado, nem objetivo estratégico, nem chance real de tomada de poder. Punir esses atos como se fossem tentativa de golpe é reescrever a realidade para manter viva a fábula de que a democracia foi salva pela toga. E para que a fábula se sustente, tolera-se até mesmo a violação à proporcionalidade das penas.

Em uma democracia republicana, fundada na separação de Poderes e na legalidade estrita, não há espaço para a ideia de que o Judiciário salva a Nação pela força de suas próprias decisões. Se o faz, já não é juiz: é parte, é poder hegemônico, é intérprete absoluto da história. E nesse cenário, a Constituição deixa de ser a fonte da autoridade judicial para se tornar apenas a moldura simbólica de um protagonismo que não lhe foi concedido.

A república se sustenta em freios, não em cruzadas. E a Corte que se arroga a função de impedir um golpe que nunca poderia ter contido, termina por ameaçar, ela mesma, o equilíbrio que jura proteger.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

 

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