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Definição de mulher é biológica, diz Suprema Corte britânica; entenda como isso é bom

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Vivemos uma época, ao menos no Brasil, em que palavras são esticadas até romperem. Conceitos jurídicos consolidados, expressões técnicas com densidade histórica e política, tudo isso se vê cada vez mais dissolvido em subjetivismos fluidos, muitas vezes embalados pela retórica do progresso. Nesse ambiente, a decisão da Suprema Corte do Reino Unido no caso UKSC 2024/0042 surge como uma âncora: um ato de fidelidade à linguagem, à lei e à estrutura do Estado de Direito. E é disso que se trata, no fundo: de saber se as leis ainda significam algo — e se os juízes ainda se dispõem a escutar o que o texto diz.

O caso, embora apresentado sob o véu técnico da representatividade de gênero em conselhos públicos escoceses, tocava diretamente a questão central: quem, em termos legais, pode ser considerada mulher? A pergunta não era sobre sentimentos, identidade ou aspirações individuais, mas sobre a definição jurídica de um termo usado pelo Parlamento ao aprovar a Equality Act 2010. Diante da pressão cultural para expandir o conceito de “mulher” de modo a incluir pessoas biologicamente do sexo masculino que se identificam com o gênero feminino, a Suprema Corte respondeu com uma negativa respeitosa, firme e juridicamente irrepreensível.

Logo nas primeiras páginas, os juízes delimitam com precisão a tarefa da Corte: “Esta apelação levanta um ponto breve, mas importante, de interpretação estatutária. Ela diz respeito ao significado da palavra ‘mulher’, conforme aparece na Lei da Igualdade de 2010” (parágrafo 9). O tribunal não parte de abstrações morais ou aspirações culturais — parte do texto da lei.

A Corte então se dedica a reconstruir o sentido jurídico de “mulher”, tal como utilizado pela legislação. Embora não diga literalmente que “mulher” significa “fêmea humana adulta”, o julgamento aponta reiteradamente para a definição baseada no sexo biológico. No parágrafo 172, por exemplo, afirma-se: “A Lei da Igualdade usa o termo ‘sexo’ em seu sentido biológico.” E no parágrafo 177, reforça-se que “sexo”, para fins da lei, refere-se a uma “classificação binária e biológica”. Trata-se, portanto, de uma reafirmação do que a Corte descreve como a “classificação binária e biológica” do sexo (parágrafo 177), frequentemente referida no debate público como “realidade objetiva do sexo”.

O voto deixa claro que a proteção de pessoas trans existe — mas por outro fundamento normativo. O tribunal afirma que pessoas trans estão protegidas pela característica de “redesignação de gênero” (gender reassignment), e não pela redefinição da categoria de “sexo” (parágrafo 264). Como a Corte detalha nos parágrafos 248 a 263, pessoas trans — com ou sem Gender Recognition Certificate (GRC) — permanecem protegidas contra discriminação direta, indireta e assédio. Ou seja, o Direito pode reconhecer essas proteções sem alterar o significado das palavras na legislação de origem.

Há também, com notável sobriedade, uma resposta jurídica à eventual alegação de conflito entre legislações. A Corte considera a interação entre a Gender Recognition Act 2004 (GRA) e a Equality Act 2010, e conclui que a existência de um GRC — que altera o sexo legal de uma pessoa para efeitos da GRA — não altera automaticamente a definição de ‘sexo’ para efeitos da Equality Act, especialmente quando o contexto e o propósito da norma exigem uma leitura baseada no sexo biológico. Como se lê no parágrafo 264: “A seção 9(3) da GRA permite que outras leis desconsiderem os efeitos de um GRC quando apropriado, com base em seu contexto e propósito.” A Corte, portanto, preserva o valor jurídico dos GRCs sem permitir que eles desfigurem conceitos estabelecidos por normas distintas.

Com isso, a Corte declarou inválida a orientação do governo escocês que incluía mulheres trans com GRC na definição de “mulher” para fins da Gender Representation on Public Boards (Scotland) Act 2018, que visa garantir 50% de mulheres em conselhos públicos, reafirmando que apenas mulheres biológicas contam para esse objetivo (parágrafo 266).

Em nenhum momento a Suprema Corte britânica se afasta do texto legal. Ao contrário: o respeita com rigor quase cirúrgico. No parágrafo 188, lê-se que “a proposta de definição alternativa do termo ‘mulher’ enfraqueceria o significado que o Parlamento claramente pretendeu atribuir ao termo.” O Judiciário, portanto, não assume para si o poder de alterar conceitos legislativos em nome de demandas sociais mutáveis.

Essa atitude contrasta fortemente com o que se vê no Brasil. Aqui, o Supremo Tribunal Federal frequentemente adota interpretações em que conceitos jurídicos se desviam do texto constitucional, sendo reinterpretados à luz de princípios amplos, sem suficiente ancoragem no contexto normativo ou histórico. O sentido público das palavras cede lugar à vontade subjetiva do intérprete. E o Direito, em vez de fornecer segurança, se torna veículo de elasticidade ideológica.

A Suprema Corte britânica, ao decidir que o termo “mulher”, tal como usado na Equality Act 2010, refere-se ao sexo biológico, demonstrou que ainda existem juízes dispostos a respeitar o texto, a função legislativa do Parlamento e os limites do próprio poder judicial. Essa contenção não é conservadorismo: é civilização institucional. É a ideia — quase revolucionária hoje — de que o Direito ainda deve ser governado por regras e significados públicos, e não por estados de espírito revestidos de princípio.

Se o Brasil deseja resgatar a autoridade da Constituição, precisará reencontrar essa postura. Porque onde o texto não vincula, o juiz reina. E onde o juiz reina, o cidadão se cala.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

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