Na manhã desta terça-feira (11), Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal, fez um discurso de abertura do 1º Congresso STJ Brasil-China de Direito. O tema do evento, promovido pelo Superior Tribunal de Justiça, é meio ambiente e inteligência artificial no ordenamento jurídico de ambos os países.
Em sua fala, Barroso lembrou que esteve na China em meados de 2024 a convite do Supremo Tribunal Popular da ditadura de partido único. “Voltei vivamente impressionado com tudo o que vi em termos de progresso econômico, de progresso humano”, disse o ministro. “O quarto de hotel que me deram era maior que a casa em que fui criado”, completou, “tudo da minha viagem da China foi adorável, trago no meu coração as melhores lembranças”.
Em postagem no Instagram que fez em 1º de julho, ainda durante a viagem, Barroso disse que o interesse era uma cooperação “para a utilização da inteligência artificial no Poder Judiciário do Brasil” para “tornar a justiça acessível, transparente e célere”.
Isso tudo, claro, é de pasmar.
Mas pasmemos por partes, porque é muita coisa.
Não existe direito em ditadura
Barroso começou sua fala explicando a herança “romano-germânica” do direito no Brasil, e a introdução de uma pitada de influência da common law do mundo anglófono na forma de precedentes vinculantes.
Eis como é o direito na China: em 24 de agosto de 2013, a polícia entrou na casa do jornalista Liu Hu em Cantão (Guangzhou) e o levou para o Centro de Detenção nº 1, em Pequim, a 2.200 km de sua casa. O presídio é para bandidos perigosos, mas Liu Hu era apenas um jornalista. Ele foi acusado de difamação por denunciar um político do Partido Comunista por corrupção. Seu pedido de fiança foi instantaneamente rejeitado e um de seus advogados foi posto sob investigação disciplinar por publicar documentos do caso na Internet. As informações são da organização Repórteres Sem Fronteiras.
Liu Hu já havia provado sua competência resolvendo casos de assassinato e com outras denúncias de corrupção na cúpula do partido, segundo a ABC News da Austrália. Ele saiu da prisão, mas não tem liberdade. Isso graças à principal aplicação de tecnologia chinesa em inteligência artificial: o Sistema de Crédito Social, que monitora mais de um bilhão de cidadãos chineses.
A condenação por suposta difamação colocou a nota de Liu Hu muito baixa no sistema. Ele até publicou desculpas a mando das autoridades pela denúncia e pagou uma multa, mas o tribunal exigiu mais dinheiro, que ele se recusou a pagar.
Agora ele está em uma lista negra de “pessoas desonestas”, um dos primeiros rotulados assim pelo sistema. Isso destruiu sua carreira, o deixou socialmente isolado, e a integração do sistema digital totalitário com o transporte basicamente o condenou a uma prisão domiciliar perpétua.
Ele também teve banidas as suas contas nas redes sociais — será que é aqui que o STF quer aprender algo com a inteligência artificial da China? Suas contas no Wechat e o Weibo tinham mais de dois milhões de seguidores.
Outros chineses têm medo de defender Hu, pois isso poderia baixar suas notas de Crédito Social. “Seus olhos estão cegos e seus ouvidos estão tapados. Eles sabem pouco do mundo e vivem em uma ilusão”, disse o jornalista em 2018 sobre seus concidadãos.
Não há como se esconder: o Sistema de Crédito Social integra centenas de milhões de câmeras de segurança em todo o território chinês, com reconhecimento facial. Eram 200 milhões de câmeras em 2018. Os proscritos podem ser acompanhados por agentes do regime o dia todo.
É isso o que chamam de direito na China e Barroso chama por tabela de impressionante “progresso humano”.
O regime de Xi Jinping condena explicitamente as democracias e os direitos humanos
Se Barroso fosse o defensor da democracia que ele alega que é, ele poderia perguntar ao ditador Xi Jinping (com quem se encontrou na China) ou ao embaixador Zhu Qingqiao sobre o “Documento Número 9”.
Com título original “Comunicado sobre o estado atual da esfera ideológica”, o memorando interno vazou da cúpula do Partido Comunista da China em setembro de 2013, o primeiro ano do agora mandato vitalício de Xi.
Até aquele momento, havia alguma esperança dos chineses mais democratas e liberais que o novo mandatário fosse arejar o ambiente de liberdades no país. O documento matou essa esperança.
O comunicado foi endereçado a todas as províncias, regiões autônomas, municipalidades, ministérios e órgãos estatais, ministros do partido, Quartel-general do Exército, comitês partidários maiores e organizações civis. Ou seja, para o país inteiro.
Sete ameaças, ou “problemas notáveis”, são apontadas. Primeira: “promoção da Democracia Constitucional Ocidental”. O problema de promover a democracia constitucional na China, segundo a opinião da cúpula comunista com concordância de Xi Jinping, é que suas características, como “sistema multipartidário, eleições gerais, Judiciários independentes” são “conceitos de nação, modelo político e sistema da classe capitalista”. Para o regime, a democracia constitucional é “superestimada”. Anote aí, Barroso.
“O propósito de proclamar publicamente os pontos principais da democracia constitucional ocidental é fazer oposição à liderança do partido”, diz o comunicado.
A segunda ameaça é “promover ‘valores universais’ em uma tentativa de enfraquecer as fundações teóricas da liderança do Partido”. Valores que se apliquem a toda a humanidade são só “ocidentais” e o propósito de promover direitos humanos é “obscurecer as diferenças essenciais entre o sistema de valores do Ocidente e o sistema de valores que nós defendemos”, que são os do “socialismo”. Ou seja: o regime de Xi Jinping ataca a validade universal dos direitos humanos. Anote aí, Barroso.
As outras ameaças seriam “promover a sociedade civil”, “promover o neoliberalismo”, “promover a ideia ocidental de jornalismo”, “promover o niilismo histórico” — que seria criticar o ditador Mao Tsé-tung, um genocida com dezenas de milhões de vítimas em cuja homenagem Xi Jinping gasta bilhões de dólares anualmente — e, finalmente, “questionar a natureza do socialismo com características chinesas”.
Curioso que tudo o que vem do Ocidente seja considerado uma ameaça, exceto as ideias sem fundamento de Karl Marx sobre a economia e a organização social. Essas estão livres para fazer imperialismo no Oriente.
Poderíamos continuar tocando na hipocrisia de um dos países mais poluentes do mundo querer dar lições sobre meio ambiente. Poderíamos falar também das denúncias de extração forçada de órgãos de minorias postas em campos de “reeducação” em província na qual o aeroporto é marcado com adesivos para um “Canal de Transporte de Órgãos Humanos”. Mas creio que já demos coisas demais para Barroso anotar em seu caderninho de defensor da democracia.