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As mentiras e omissões da peça de propaganda pró-Moraes na revista New Yorker

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Na imprensa anglófona, o que o jornalista Jon Lee Anderson fez por Alexandre de Moraes, em entrevista publicada ontem na revista The New Yorker, se chama puff-piece. É um texto chapa-branca, feito para bajular e ignorar ou minimizar críticas.

Moraes emitiu suas confusões filosóficas e históricas de sempre: “Se Goebbels [ministro da propaganda de Hitler] estivesse vivo e tivesse acesso ao X, estaríamos condenados. Os nazistas teriam conquistado o mundo”, alega o ministro. Quando discute o suposto plano “Copa 2022” que envolveria seu assassinato, ele se autoelogia, dizendo à revista “brinco com minha equipe de segurança que eu não poderia morrer. O herói do filme tem que continuar”.

Essa tese de que um ambiente de livre expressão teria ajudado aos nazistas já foi refutada por inúmeras cabeças que sabem mais que Moraes sobre o assunto. Exemplos: Flemming Rose, editor do jornal dinamarquês Jyllands-Posten, disse na própria revista New Yorker, em 2015, que “ao contrário do que a maioria das pessoas pensam, a Alemanha de Weimar de fato tinha leis de discurso de ódio e elas eram aplicadas com grande frequência”. Ele completou que “líderes nazistas tais como Joseph Goebbels, Theodor Fritsch e Julius Streicher foram todos processados por discurso antissemita”. A censura, uma das ferramentas favoritas de Moraes, nunca foi uma ferramenta efetiva contra o nazismo.

O mesmo argumento é feito por Nadine Strossen, jurista que presidiu a União Americana de Liberdades Civis (ACLU) por 17 anos. “As leis de ‘discurso de ódio’ americanas foram aplicadas até contra os nazistas, alguns dos quais cumpriram penas substanciais de prisão. Mas em vez de suprimir a ideologia antissemita dos nazistas, esses processos ajudaram os nazistas a ganharem atenção e apoio”, escreveu Strossen em seu livro de 2018 “Ódio: por que devemos resistir a ele com a liberdade de expressão, não com a censura” (trad. livre, Oxford University Press).

Para fecharmos a refutação a Moraes em três exemplos, acrescento o especialista em liberdade de expressão dinamarquês Jacob Mchangama, que deu até o nome “falácia de Weimar” ao argumento de Moraes, por ser um engano muito difundido. E faz um alerta em seu livro de 2022: “os nazistas usaram as leis de emergência da República de Weimar para estrangular a própria democracia que essas leis foram feitas para proteger”.

O que torna a puff-piece efetiva não são tanto as palavras de Moraes, mas o trabalho enviesado do jornalista, que chega a elogiar a forma física de Moraes, seu semblante rigoroso e o formato de seu queixo.

A revista New Yorker é um veículo recorrente para a bajulação, mas só do ponto de vista progressista. Em 2014, publicou uma puff-piece exaltando a charlatã da pesquisa biomédica Elizabeth Holmes, depois condenada a 11 anos de prisão. Em 2022, publicou um perfil elogioso do barão das criptomoedas Sam Bankman-Fried, hoje preso por fraude. Outros bajulados ao longo dos anos foram o médico e burocrata Anthony Fauci e o político democrata Pete Buttigieg.

Como é o caso com textos desse tipo, basta um pouco de contexto e fato para derrubar cada omissão e mentira. Vamos aos fatos.

Omissão sobre o início do Inquérito das Fake News

Anderson alega que os inquéritos intermináveis abertos desde 2019, como o Inquérito das Fake News, foram criados para enfrentar Bolsonaro. Isso omite a parte mais importante da história: o inquérito foi criado quando surgiram, no contexto da Lava Jato, denúncias e críticas contra ministros do STF. Em especial Toffoli, que abriu o inquérito de ofício, esticando o Regimento Interno da corte, e nomeou Moraes para chefiá-lo.

A censura à revista Crusoé, no primeiro mês da abertura do inquérito, é eloquente o suficiente para ilustrar o contexto inicial. Houve recuo de Moraes, mas até hoje, como informa o advogado da revista, André Marsiglia, a publicação e seu editor-chefe permanecem inclusos na investigação irregular, que completou seis anos mês passado.

Na abertura dos inquéritos houve também a motivação de tentar coibir comentários críticos da população contra os ministros em ambientes públicos, retratados como “ataques” contra a “honorabilidade” da corte. Ou seja, a motivação de censura a críticas esteve presente desde o início do estado de exceção.

Os inquéritos intermináveis são uma forma de os ministros do STF tentarem se blindar de críticas. Isso veio a se confundir com enfrentamento ao movimento político de Jair Bolsonaro, que esquentou o tom da crítica à corte após a libertação de Luiz Inácio Lula da Silva. Mas há casos que ilustram que o bolsonarismo não é a causa primeira da reação do tribunal.

Por exemplo, em 2018, em um voo comercial, o advogado Cristiano de Acioli disse ao então ministro da corte Ricardo Lewandowski “O Supremo é uma vergonha, viu? Eu tenho vergonha de ser brasileiro quando eu vejo vocês”. Lewandowski ameaçou o advogado de prisão e chamou a Polícia Federal. Acioli foi detido temporariamente para “esclarecimentos” em uma delegacia, e foi instaurado um inquérito contra ele. Importante: o Ministério Público não viu crime na expressão do advogado e pediu o arquivamento do inquérito. A primeira instância concordou, mas foi atropelada pelo STF, que incluiu Acioli no Inquérito das Fake News.

Os inquéritos abertos de ofício, que são assim justamente para driblar o papel do Ministério Público, existem em parte porque muitos ministros do STF, como Moraes, acreditam que devem ter tratamento privilegiado e serem protegidos de ouvir críticas nas ruas mesmo após soltarem por tecnicalidades um presidente condenado por corrupção em três instâncias.

Omissão sobre a saúde mental do “Tio França”

O artigo da revista começa com o caso de Francisco Wanderley Luiz, o “Tio França”, que deu um fim à própria vida com fogos de artifício na frente do STF. Para validar a narrativa de Moraes e da Polícia Federal, que alegam sem ter apresentado provas que o caso não foi isolado, nenhuma menção é feita aos problemas mentais do chaveiro engatilhados por um divórcio.

Essa informação foi trazida em novembro, na época da tragédia, pelo deputado Jorge Goetten (Republicanos-SC), que conhecia o homem, com quem já teve amizade.

Todo o foco é dado a Luiz já ter sido candidato a vereador pelo partido de Bolsonaro em Rio do Sul.

Omissão sobre os motivos pelos quais Elon Musk começou a criticar Moraes e mentiras sobre banimento do X

A New Yorker diz vagamente que Musk e Moraes estão brigando “desde a primavera” de 2024, há um ano. O motivo foi a publicação dos Twitter Files Brasil. Musk leu a versão em inglês das nossas reportagens e, vendo que os próprios consultores sêniores do Twitter diziam que as ordens secretas de Moraes violavam o Marco Civil da Internet e a Constituição, passou a dizer não para as decisões. O Marco Civil não prevê a derrubada de perfis inteiros, como manda frequentemente Moraes. A parte do Marco Civil que limita as derrubadas a conteúdos infringentes, o Artigo 19, não à toa agora é alvo de um processo em andamento no STF que poderá resultar na corte declarando-o inconstitucional para validar as ações censórias de Moraes.

Revelamos, também, que as ordens secretas, especialmente vindo do TSE no período anterior e durante a gestão de Moraes como presidente desse tribunal, afetavam parlamentares como Marcel Van Hattem por meras críticas. É uma mentira, portanto, que Moraes só visasse a remoção de “discurso de ódio e propaganda maliciosa” na série de decisões que culminou no banimento do X por 40 dias. Ao menos que todas as críticas no país agora sejam caracterizadas dessa forma.

Parece que Moraes sentiu: na entrevista, ele lembra que Musk disse que ele parecia “um cruzamento entre Voldemort e um Lorde Sith”. Ele riu a respeito e disse “para ser honesto, achei divertido”. Moraes repete que a questão do banimento do X é que a empresa tinha que respeitar “a lei brasileira”. Poderia ter combinado: o X respeitará a lei brasileira, se é que ordens secretas são “lei”, se ele prometer respeitar o Artigo 19 do Marco Civil.

Mentira sobre coordenação internacional na direita

A longa matéria da New Yorker repete a mentira da esquerda brasileira de que haveria uma coordenação internacional por trás da resistência à censura. A real coordenação internacional está no ativismo pró-censura, regado a dinheiro de George Soros e outros. É por isso que termos inventados pela acadêmica Claire Wardle, cujo trabalho foi financiado em parte com dinheiro de Soros, vão parar na boca de Lewandowski quando ele validou a censura prévia contra a produtora Brasil Paralelo. O mesmo termo usado por Lewandowski e criado por Wardle, “desordem informacional”, também foi usado pelo advogado-geral da União, Jorge Messias, em suas tentativas de intimidar as redes sociais.

O alinhamento internacional vai além da escolha de vocabulário. Está nas ideias. É muito claro de que lado existe uma conspiração para atacar os padrões anteriores de liberdade de expressão, especialmente o padrão da Primeira Emenda, e introduzir pela porta dos fundos o novo padrão de criminalizar “discurso de ódio” e “desinformação”, um padrão de censura 100% progressista.

Frágeis tentativas de demonstrar isenção

Alguém poderá dizer que estou sendo injusto ao chamar de puff-piece o texto de Jon Lee Anderson, pois lá estão mencionados problemas como a concentração de poder nas mãos de Moraes e decisões como a ameaça de multa de R$ 50 mil por dia a quem tentasse usar o X por meio de redes privadas virtuais (VPN). Minha resposta: é muito pouco. O total de perguntas difíceis que Anderson fez ao se sentar com o ministro foi zero. No máximo, perguntou se ele acha que Bolsonaro planejou o 8 de Janeiro, ao que ele responde “é possível que eu tenha que julgar esse caso, não posso comentar”. É uma imparcialidade de se admirar, depois que passou o resto da entrevista essencialmente reafirmando o papel de sua corte de perseguir um movimento político. Melhor que isso, só o ministro comunista Flávio Dino se declarando desimpedido para julgar Bolsonaro.

O texto é um resumo das narrativas da esquerda brasileira, com direito a entrevista com Tabata Amaral, mas até para fazer isso precisa ignorar que a esquerda brasileira já foi alvo no mesmo período dos abusos de autoridade do ministro. Basta perguntar ao Partido da Causa Operária. Aliás, em 2021, Tabata também foi um dos potenciais alvos de coleta de dados privados com decisões judiciais secretas do TSE em arrepio ao Marco Civil. Tudo o que ela e outros fizeram foi postar uma hashtag no debate sobre o voto impresso.

Anderson entrevistou Moraes duas vezes. A última foi no mês passado. Agora, diz o jornalista, o juiz parecia mais relaxado. Sobre o processo contra Bolsonaro e outros 33 por suposto plano de golpe de Estado, Moraes disse que “a narrativa de perseguição política, a alegação de inimizade pessoal, tudo isso caiu, porque não foi só a Polícia Federal que os acusou — o procurador-geral da República decidiu denunciá-los”. Ele só não contou que ele próprio fez lobby pela nomeação do PGR, Paulo Gonet, até em um churrasco com Lula.

A reportagem não menciona o misterioso registro fraudado de entrada de Filipe Martins, ex-assessor de assuntos internacionais de Bolsonaro, em Orlando em dezembro de 2022. Moraes continua perseguindo Martins, agora acossando seu advogado por filmar um vídeo com Martins em silêncio ao fundo.

Moraes acha graça de seu papel de censor-geral da República. “As pessoas vão começar a dizer que estou perseguido a todos agora”, ele brincou com o repórter da New Yorker. “Nesse ritmo, também serei acusado de perseguir Trump”.

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