“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.” A frase, dita por Napoleão, o porco ditador de A Revolução dos Bichos, de George Orwell, cristaliza um dos maiores perigos de qualquer regime que se pretenda igualitário: a desigualdade institucionalizada em nome de um bem maior. No romance, os animais da fazenda se rebelam contra os humanos em busca de liberdade, mas, após tomarem o poder, os porcos impõem uma tirania ainda mais sutil e perversa. A promessa de igualdade desaparece, substituída por um novo regime em que os líderes mantêm privilégios enquanto impõem sacrifícios aos demais. A lei, outrora instrumento de justiça, torna-se ferramenta de dominação.
No Brasil de 2025, a metáfora de Orwell ganha vida. A Justiça brasileira permite que um ex-presidente da República, condenado por corrupção, cumpra pena em prisão domiciliar em uma cobertura de R$ 9 milhões. A justificativa? Problemas de saúde. O mesmo critério raramente se aplica a réus sem sobrenome ilustre. No caso de Fernando Collor, não apenas a saúde, mas também o status, o prestígio e a história política pesaram mais que a gravidade dos crimes praticados contra o erário.
Em contrapartida, os réus dos atos de 8 de janeiro — muitos deles primários, sem antecedentes e com participação secundária — têm sido julgados com o rigor de um direito penal de guerra. A retórica da “defesa da democracia” tem servido de biombo para condenações desproporcionais, em julgamentos onde a individualização da conduta é ignorada, a presunção de inocência é invertida e o STF atua, simultaneamente, como vítima, acusador e juiz.
O caso de Débora Rodrigues dos Santos é emblemático. Cabeleireira, mãe de dois filhos, sem qualquer ligação com grupos armados, foi acusada de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito, associação criminosa e outros crimes. Sua “ação criminosa”? Pichar a estátua da Justiça com um batom vermelho com os dizeres: “Perdeu, Mané!”. Nenhuma prova a vinculava a ações violentas ou à invasão dos prédios públicos. O voto do Ministro Luiz Fux, ao contrário dos demais, reconheceu que não havia qualquer elemento probatório de sua participação em atos golpistas, mas manteve a condenação pelo crime de deterioração de patrimônio tombado, com pena de 1 ano e 6 meses de reclusão e multa. A maioria, infelizmente, votou por 14 anos de prisão.
A situação torna-se ainda mais grave com o caso de Cleriston Pereira da Cunha, conhecido como “Clezão”. Empresário de 46 anos, foi preso em flagrante durante os atos de 8 de janeiro e teve sua prisão convertida em preventiva. Apesar de sofrer de diabetes e hipertensão, e de a Procuradoria-Geral da República ter emitido parecer favorável à sua liberdade provisória, o Supremo Tribunal Federal não analisou o pedido. Em novembro de 2023, Cleriston morreu após um mal súbito durante o banho de sol no Complexo Penitenciário da Papuda. Sua morte evidencia a negligência e a seletividade no tratamento dispensado aos réus dos atos de 8 de janeiro, contrastando com a celeridade e benevolência observadas em casos como o de Fernando Collor.
No Brasil, a corrupção tem regalias. Já a revolta popular — mesmo quando se expressa de forma simbólica e desorganizada, à margem dos atos mais violentos — é tratada com toda a repressão e fora da lei. Que a quebradeira do 8 de janeiro foi grave, ninguém nega. Mas justiça não se faz com punição coletiva nem com inversão da presunção de inocência. O que se exige é proporcionalidade, provas individualizadas e respeito ao devido processo legal — algo que Collor recebeu de sobra, e Clezão, nenhum.
No final da fábula, os animais olham pela janela e já não distinguem quem é porco e quem é homem. No Brasil, ao olharmos as decisões dos tribunais, também já não conseguimos distinguir onde termina o poder e onde começa a lei.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum