Na manhã de 23 de abril, uma oficial de justiça entrou na Unidade de Terapia Intensiva do hospital DF Star, em Brasília, para intimar o ex-presidente Jair Bolsonaro sobre o início do processo criminal que o acusa de tentativa de golpe de Estado. Internado após uma cirurgia no intestino, Bolsonaro recebeu pessoalmente o mandado, assinou o documento e viu-se, ali, citado formalmente. A partir desse momento, começou a correr o prazo de cinco dias para que sua defesa técnica apresentasse resposta à acusação, como determina o rito penal. A intimação, segundo nota oficial do Supremo Tribunal Federal, foi realizada em “data adequada”.
Pouco importa, para a lógica constitucional, se o acusado é ex-presidente, médico, professor ou catador de recicláveis. Menos ainda importa se realizou uma live da cama hospitalar — como fez com seus filhos dias antes. Transmitir uma conversa política controlada, com ajuda de familiares, é coisa diversa de prestar informações jurídicas complexas a uma equipe de advogados, analisar documentos, traçar estratégias e participar, com lucidez e autonomia, da própria defesa. A live não comprova aptidão, apenas expõe imagem. Usá-la como critério de capacidade é ignorar o que a própria medicina ensina sobre o desgaste físico e emocional do ambiente hospitalar. Pior: é tomar aparência por substância, fotografia por consciência.
A Constituição não exige apenas que o processo se mova. Exige que se mova respeitando limites. Estabelece, já no caput do artigo 5º, que a vida é inviolável — e esse não é um adjetivo poético, mas um comando jurídico. Quando um cidadão está internado em UTI, encontra-se em condição clínica crítica, submetido a cuidados intensivos justamente para proteger aquilo que o texto constitucional declara como inviolável. Ninguém pode ser submetido, nessas circunstâncias, à pressão de um ato judicial que deflagra prazos, impõe ônus, exige raciocínio e atenção. Muito menos pode o Estado agir de modo a potencializar riscos de agravamento da saúde. Não se trata de deferência, mas de freio.
A defesa jurídica em processos penais não se faz sem o réu. Ainda que os advogados assinem petições e sustentem oralmente, precisam de contato, memória, versão, compreensão. A ampla defesa não é a fala do advogado — é o direito do acusado de participar ativamente, por si e por seu defensor. Impedir, dificultar ou reduzir essa possibilidade, especialmente quando há fragilidade física extrema, é mais do que inoportuno: é inconstitucional. É a negação do contraditório, da simetria mínima entre acusação e defesa.
Convênios internacionais, como o Pacto de San José da Costa Rica, reafirmam esse ponto. Garante-se ao acusado o tempo e os meios necessários para preparar sua defesa. Tempo e meios, não apenas papel e prazo. Não há convenção que autorize a intimação de paciente em recuperação hospitalar sob risco clínico — e, se não há previsão expressa, há espírito protetivo claro. Em situações assim, o Judiciário não deve agir com protagonismo, mas com prudência. O silêncio do Estado é, às vezes, sua forma mais alta de respeito.
Não se trata apenas de violação ética ou de falta de sensibilidade institucional. Trata-se da transgressão de normas expressas. O artigo 5º, inciso LV da Constituição assegura a ampla defesa e o contraditório, com os meios e recursos a ela inerentes — o que inclui tempo razoável, consciência plena e capacidade de diálogo com os advogados. O artigo 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos garante ao acusado os meios adequados para a preparação da própria defesa. O Código de Processo Penal, no artigo 185, §2º, veda interrogatórios se o réu estiver impossibilitado de compreender o ato — lógica que deve se aplicar, com ainda mais razão, à citação que dá início a sua participação ativa no processo. Ignorar essas balizas é inverter o papel do Estado: de garantidor da liberdade, transforma-se em acelerador do risco.
Tratar o processo como um ritual que precisa seguir adiante, custe o que custar, é esquecer que o direito não é um fim em si mesmo. É meio para proteger liberdades, vidas e garantias. Quando o Estado insiste em impor sua força sobre alguém que está sob cuidados intensivos, não é o processo que avança — é o limite que recua. O que se revela não é justiça, mas prepotência institucional. Nenhuma causa, por mais grave que seja, autoriza o desprezo à vida de um réu. Nem mesmo a narrativa de uma “trama golpista” justifica um procedimento que, no afã de punir, acaba por adoecer.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum