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“TDAH está desancorado da ciência”, “autismo não é espectro”: a psiquiatria no divã

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Estão em toda parte: tanto os problemas mentais, quanto as soluções imperfeitas para eles. Entre os brasileiros, segundo estudo de 2023 do Instituto Cactus e da AtlasIntel, um a cada seis fazem uso de medicamentos para transtornos psiquiátricos. Mais que a quantidade que busca a psicoterapia: 5%.

Os números de diagnósticos de Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) e Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), ambos considerados diferenças de desenvolvimento no sistema nervoso central, têm crescido vertiginosamente.

Segundo o Censo Escolar 2023, em apenas um ano o número de alunos diagnosticados com TEA saltou 48%, atingindo 636 mil diagnosticados no Brasil em 2023. Nos Estados Unidos, foi observado um crescimento de 400% nesses diagnósticos de autismo em 16 anos.

Quanto ao TDAH, o Ministério da Saúde estima prevalência de 7,6% em jovens dos seis aos 17 anos de idade; 5,2% entre os adultos até os 44 anos e 6,1% nos de meia idade acima de 44 e idosos. São 11 milhões de pessoas ao todo.

As causas para o aumento de incidência são várias, inclusive o simples maior acesso a profissionais da saúde mental. Mas alguns profissionais culpam inovações intelectuais feitas dentro da própria psiquiatria.

Questionamento ao diagnóstico de TDAH

Todas as proporções de diagnosticados com TDAH dadas acima seriam consideradas superestimativas no final da década de 1990, quando os testes mais rigorosos de segurança e eficácia da droga Ritalina foram feitos.

Um dos profissionais que supervisionaram os testes, o psicólogo James Swanson (Universidade da Califórnia em Irvine), esperava na época que a proporção de diagnosticados fosse se estabilizar em torno de 3% da população. Foi o que ele relatou para uma reportagem especial publicada na The New York Times Magazine no domingo (13).

Enquanto a porcentagem de diagnósticos subia, ele estudava 600 crianças distribuídas em grupos para testar a eficácia da Ritalina. Os resultados eram promissores após um ano de tratamento. Contudo, após três anos, o benefício observado parecia desaparecer. Os sintomas de TDAH depois da longa observação eram os mesmos, independentemente de tomarem o medicamento.

Agora octogenário e perto de se aposentar, Swanson soa ainda cheio de dúvidas: “Há coisas sobre a forma como fazemos esse trabalho que simplesmente estão erradas”.

Swanson não está sozinho. A revista entrevistou alguns dos principais pesquisadores do TDAH no mundo e muitos estão preocupados com a desconexão entre a imagem do transtorno que está sendo formada pelas pesquisas e o modo como ele é tratado nas clínicas e consultórios.

O psiquiatra e pesquisador Edmund Sonuga-Barke (King’s College London), com 35 anos de experiência, se sente agora mais perdido para identificar as causas do TDAH do que quando começou. “Temos uma definição clínica de TDAH que está cada vez mais desancorada do que estamos encontrando na ciência”, ele afirmou.

Agora, a proporção de crianças americanas com o diagnóstico bateu o recorde de 11,4%, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). Na última década, as prescrições para estimulantes como a Ritalina no país cresceram 58%.

Há algo de real no TDAH detectado ao menos por parte dos diagnósticos. Quando geneticistas estudam a participação dos genes no transtorno, com uma medida chamada herdabilidade (a proporção da variação na característica atribuível aos genes), com frequência chegam a valores entre 40% e 70%.

O principal Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, hoje na quinta edição), produzido pela Associação Psiquiátrica Americana, é o quarto trabalho científico mais citado nos últimos 25 anos, segundo a revista Nature. Entre 100 mil e 400 mil outros trabalhos científicos citam o DSM-5.

Para o déficit de atenção e hiperatividade, o DSM-5 prescreve o uso de uma lista de 18 sintomas igualmente distribuídos entre a falta de atenção suficiente para prejuízo ao indivíduo e a hiperatividade ou impulsividade. Se uma criança exibir 12 dos 18 sintomas (seis em cada categoria) da lista antes de completar 12 anos, recebe o diagnóstico de TDAH.

Uma opinião popular entre médicos e pais dessas crianças é que, uma vez feito o diagnóstico, a melhor esperança são os medicamentos estimulantes. Pois o TDAH seria parte da natureza do diagnosticado, algo fixo e resistente a outras intervenções não-medicamentosas.

Sonuga-Barke duvida dessa noção. Para ele, a ideia de que há uma categoria natural e definida de pessoas com TDAH “simplesmente não parece ser o caso”. Com frequência, os critérios do DSM, de aparência objetiva, dependem bastante da interpretação do médico e de sua subjetividade.

Apesar de algumas medidas altas de herdabilidade, há fatores ambientais importantes que podem causar dificuldades de atenção, como pancadas na cabeça, consumo de álcool durante o desenvolvimento do feto, exposição ao chumbo e outros.

Outra dificuldade é a interseção dos sintomas com outros transtornos: mais de 75% das crianças diagnosticadas com TDAH também têm algum outro diagnóstico psiquiátrico como transtorno de ansiedade, dificuldades de aprendizado e transtorno opositor desafiador (uma versão patológica da desobediência).

Outros elementos que pareciam inicialmente objetivos foram postos em dúvida com o avanço da pesquisa: biomarcadores como genes individuais, diferenças de atividade elétrica no cérebro e tamanho de regiões cerebrais específicas. As medidas de herdabilidade continuam sugestivas, mas a conclusão agora, segundo os especialistas consultados, é que a esperança de achar uma base biológica clara para o TDAH é vã.

“Não há um ponto de corte natural no qual você poderia dizer ‘esta pessoa tem TDAH e esta outra não tem’. Essas decisões são, a certo ponto, arbitrárias. Isso não significa que o sofrimento associado ao TDAH é imaginário, só significa que é parte de uma continuidade de variação. E aqui está o enigma, a crise empírica, sobre o TDAH”, explica Sonuga-Barke.

O pesquisador critica tanto a opinião de parte da direita que o transtorno seria uma fabricação, algo que não existe, quanto a opinião agora mais comum na esquerda de que é fruto de uma conspiração da indústria farmacêutica ou da sociedade pós-industrial.

A maioria de cientistas com renome na pesquisa em TDAH ainda concorda que existe alguma base biológica, só que ela se revelou mais complexa e difícil de delimitar do que esperavam no passado.

“O autismo não é um espectro”

Com reverberações até no atual movimento progressista identitário, o consenso que se formou, dentro e fora da academia, sobre o autismo é que ele é um amplo espectro que vai das pessoas com poucas dificuldades (muitas das quais seriam diagnosticadas antes com “síndrome de Asperger”) até aquelas que permanecem não-verbais por toda a vida, agora chamadas com termos como “autistas severos”.

Estão surgindo evidências e profissionais que questionam tanto o Transtorno do Espectro Autista quanto a noção de que é uma característica do neurodesenvolvimento que se apresenta em um espectro.

Em 2023, uma pesquisa sobre a genética do autismo publicada na principal revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA (PNAS) sugeriu que, ao contrário da prática comum na psiquiatria, “o atraso na fala é uma característica biológica central” do autismo. São conhecidos mais de 150 genes associados ao autismo, e análises têm sugerido que a genética faz parte da metade das explicações para o transtorno, embora a pesquisa das bases biológicas enfrente dificuldades similares às vistas com o TDAH.

Foi o DSM-5, publicado em 2013, que eliminou a ideia de que a síndrome de Asperger e o autismo eram coisas separadas e as colocou como parte de um mesmo “espectro”. A metáfora implícita faz referência ao espectro da luz visível, cujas cores são associadas a diferentes comprimentos de onda, tendo uma natureza contínua entre si.

Desde então, vozes na pesquisa têm desafiado o consenso explicitamente: “O autismo não é um espectro” foi o título de uma análise de David Kelley, pesquisador da Universidade de Auckland, na Nova Zelândia, publicada em maio do ano passado na revista Research in Autism Spectrum Disorders.

Como indica a ênfase no artigo “um”, o problema apontado por Kelley estaria na noção de que o autismo é um único espectro. Para ele, há “múltiplos espectros relevantes” sob o mesmo guarda-chuva conceitual.

Por exemplo, alguém com dificuldades sensoriais (comuns entre autistas como entendidos atualmente) poderia ser diagnosticado com “transtorno de processamento sensorial”. Por si só, propõe Kelley, esse diagnóstico não seria suficiente para um outro diagnóstico de autismo “brando”. O mesmo serviria para diagnósticos isolados a respeito de comportamentos de rotina estrita ou repetitivos, deficiências de linguagem, dificuldades sociais e problemas motores e de coordenação. Uma complexa combinação de cada uma dessas características, cada uma em seu próprio espectro de variação, é que definiria o autismo em conjunto.

É muito cedo para dizer se esta opinião individual vai dar frutos na psiquiatria. À primeira vista, um olhar crítico que se pode ter a respeito dela é que lembra a época pré-Copérnico quando os astrônomos ptolomaicos, que acreditavam que as órbitas precisavam ser círculos perfeitos, criavam modelos complexos de círculos sobre círculos (epiciclos) para tentar encaixar a órbita dos planetas no ideal de perfeição circular. Mas uma vantagem para Kelley é que ele dá maior importância às dificuldades ou atraso na aquisição da linguagem, conforme a recomendação do estudo da genética.

Outros têm menos esperança de salvar a ideia do espectro propondo múltiplos espectros e pensam que simplesmente foi errado somar “Asperger” e “autista” como parte da mesma coisa. O psiquiatra americano Allen Frances, que já ajudou a editar edições anteriores do DSM, lamentou a nova definição em entrevista ao New York Post. Ele previu que “a nova definição triplicaria” os diagnósticos. Para ele, a ideia do espectro “obscureceu ainda mais a fronteira entre transtorno mental e diversidade normal”.

Também não gosta da ideia do espectro a advogada Jill Escher, mãe de dois autistas não-verbais já adultos. Em texto no site The Free Press, ela pediu que os especialistas abandonem este “guarda-chuva absurdo” e o dividam em subcategorias com mais significado. Kelley fez algo parecido, com exceção da decisão de juntar os “múltiplos espectros” em uma coisa só.

Palavra da experiência

O ensaísta britânico e psiquiatra aposentado Theodore Dalrymple, famoso pelas crônicas que escreveu a respeito de seus pacientes prisioneiros, tem uma visão crítica de sua própria área de especialização.

“Igualar todos os transtornos psiquiátricos a doenças do cérebro e nada mais (como seguradoras agora na prática encorajam ou obrigam os médicos a fazerem) é grosseiro e superficial”, escreveu Dalrymple, ao resenhar um livro de história da psiquiatria. “A psiquiatria tem futuro? Sim, porque a loucura e o comportamento autodestrutivo também têm”.

“O que a psiquiatria exige”, continuou, “é a modéstia combinada a um grau de autoconfiança, e o exercício constante do juízo para mediar entre as duas”. Refletindo sobre a história da prática, contudo, Dalrymple prevê que precisaremos de muito tempo até alcançar este equilíbrio.

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