Por Katia Magalhães*
A hipótese de uma anistia para ministros do Supremo Tribunal Federal vem sendo aventada por lideranças políticas do espectro da direita, como moeda de troca em negociações para a garantia de anistia ao ex-presidente Jair Bolsonaro. Em prol de uma dita pacificação para o país, o pastor Silas Malafaia se mostrou disposto a encampar a ideia de anistia aos ilícitos do ministro Alexandre de Moraes, tendo afirmado, em recente entrevista ao canal do jornalista Claudio Dantas, que “a anistia que valeu para toda a esquerda é a anistia que valeu para os militares”. Seria a lógica política de esquecimento dos atos reprováveis dos dois polos em disputa, ao final do regime militar, aplicável ao atual momento? Seria ela viável e dotada de potencial apaziguador concreto? Creio que não.
As alusões constantes a 1979 me parecem infelizes, pois equiparam situações distintas, protagonizadas por figuras alçadas ao poder e lançadas à sujeição sob circunstâncias incomparáveis com as dos nossos dias. Lá atrás, havia efetivamente dois grupos políticos que rivalizavam entre si, em uma reprodução tropical do mundo bipolar em guerra fria, em que a elite militar no comando representava o alinhamento ao ocidente capitalista, enquanto grupos armados de esquerda buscavam nos sovietizar; ambos os lados haviam cometido crimes puníveis à luz da legislação.
Com o passar dos anos e o desgaste inerente às ditaduras, o país caminhava em direção a uma mudança de regime, e já começava até a discutir o advento de uma nova ordem constitucional. Após aprovada a anistia ampla, geral e irrestrita em 79, fardados retomaram seu caminho rumo aos quarteis, esquerdistas cessaram os sequestros e os assaltos, e o terror, tanto o oficial quanto o oficioso, cedeu lugar a uma progressiva redemocratização. Togados estavam fora do embate pela voz de mando, e assim permaneceram por um bom tempo.
Hoje, deparamos com uma maioria política apassivada, pelas mais diversas razões, diante do agigantamento do único poder não-eleito, e com um juiz de cúpula que coleciona violações seriais a direitos humanos. Do outro lado da equação, milhares de brasileiros encarcerados, ou de outro modo sancionados fora do devido processo legal, mediante decretos arbitrários travestidos de decisões judiciais. Para as vítimas de um togado cujos desmandos são chancelados pelo colegiado, sobra uma única palavra redentora: anistia.
Para elas, a anistia, se aprovada, não significará esquecimento pela via da extinção da punibilidade, pois seus atos sequer foram declarados puníveis por juízos competentes. Em vez disso, a medida representará o único mecanismo possível para o resgate de indivíduos tornados reféns do poder desenfreado de um togado.
Como atribuição exclusiva do Congresso, a anistia teria de ser discutida entre mandatários eleitos, abrangendo condutas que tenham sido indevidamente punidas, ou deturpadas como justificativa para a imposição de penas estratosféricas a pessoas estranhas ao universo delitivo. Seria de se esperar que, ouvindo as vozes das ruas, parlamentares de oposição, e até os do chamado “centrão”, em gradual desembarque do governo, votassem a anistia a condutas praticadas no legítimo exercício da liberdade de expressão, tais como, por exemplo, a publicação e/ou disseminação de postagens sobre urnas, eleições e análogas.
Porém, figuras relevantes no debate público desperdiçam dias de liberdade dos perseguidos políticos com discussões inócuas, e até contrárias ao texto constitucional. Afinal, qual seria o espaço para Moraes como beneficiário de uma anistia?
Nenhum. Em primeiro lugar, togado tão soberbo dificilmente aceitaria uma condição de anistiado, que o colocasse como dependente dos favores de outro poder, e que implicasse o reconhecimento dos desvios por ele cometidos. Outrossim, contrariamente ao ocorrido com os militares dos anos 60 e 70, Moraes não tenderia a entregar sua caneta, razão pela qual, mesmo após ser “anistiado”, prosseguiria em seus desmandos.
Por outro lado, para a inclusão de seus atos no rol das condutas a serem “esquecidas”, a nova lei de anistia teria de fazer tábula rasa para a prática de ilícitos de enorme potencial lesivo, tais como abusos de autoridade, nos quais Moraes vem comprovadamente incorrendo nos últimos anos. Por fim, casos como os de Filipe Martins e de Mauro Cid apontam indícios do cometimento de tortura por parte do togado, razão pela qual a concessão de anistia ao seu modus operandi seria inconstitucional, nos termos literais do artigo 5, XLIII da CF.
Se a nossa massa parlamentar não vivesse atrelada ao medo ou à ânsia das benesses no trancamento de inquéritos e processos de toda a espécie, a anistia aos presos políticos certamente já teria sido aprovada. Aliás, talvez nem mesmo tivéssemos chegado ao atual nível de supressão de liberdades, pois, ainda nos idos de 2019, o Congresso teria derrubado o inquérito das fake news, certidão de nascimento do regime autoritário vigente. E o teria feito mediante o uso de decreto legislativo, instrumento constitucional que permite ao parlamento zelar por sua prerrogativa exclusiva de legislar, limando os arroubos legiferantes dos demais.
Nessa mesma toada, é possível que a prisão abusiva de Daniel Silveira tivesse sido revogada por seus pares, e que os arbítrios togados tivessem sido colocados por terra, um por um.
Mesmo em nações liberais e avançadas, a política pressupõe uma dose de violência latente, na dureza dos embates rumo à formação dos consensos. Por aqui, ela é só promíscua, refletindo a fragilidade da nossa representatividade popular, e o nosso velho patrimonialismo. Inclusive na concepção de perspectivas abomináveis, como a de “esquecimento” de condutas de um potentado contra suas vítimas indefesas.
*Advogada especializada em propriedade intelectual e pós-graduada em direito da concorrência. Colunista do Instituto Liberal. Realizadora do Canal Katia Magalhães no YouTube.