Nada se cria, tudo se copia. É natural que países que estão ainda tentando ser sérios, estáveis e prósperos imitem o que parece ter dado certo em outros lugares do mundo. O que chama a atenção nas imitações do Brasil, contudo, é a frequência com que dão errado por causa de inovações tupiniquins que pioram o produto original.
Comecemos pelo Supremo Tribunal Federal. Só pode ser uma imitação da Suprema Corte dos Estados Unidos, até porque a ideia de haver um tribunal desse tipo foi dos americanos. Também foi deles a ideia de que uma Constituição está acima das demais leis, e que as últimas podem ser derrubadas se estiverem em desconformidade com o padrão constitucional.
A ideia de imitar a “SCOTUS” (sigla pela qual a contraparte americana é conhecida) veio ainda no Império, em 1889, o último ano de reinado de Dom Pedro II. Passando por uma crise política, ele enviou dois representantes aos Estados Unidos e pediu que estudassem “com todo o cuidado a organização do Supremo Tribunal de Justiça de Washington”.
“Creio que nas funções da Corte Suprema está o segredo do bom funcionamento da Constituição americana”, disse o imperador. Ele pensava que a situação brasileira poderia melhorar se fosse transferido para um tribunal o Poder Moderador. Este poder adicional aos três mais famosos já era uma imitação bem brasileira, outra jabuticaba criada para adotar com ressalvas a separação de poderes proposta por Montesquieu.
Quatro meses depois dessa carta de Dom Pedro II, com a República, o plano de imitar a SCOTUS na criação do STF continuou. Como colocou em seu livro “STF: como chegamos até aqui?” (Avis Rara, 2024) o jornalista Duda Teixeira, “Rui Barbosa, um dos que elaboraram a Carta brasileira, admitiu de forma transparente o intuito de copiar os americanos ao criar o Supremo Tribunal Federal”.
Como veremos, esse xerox saiu borrado. Assim como outras tentativas brasileiras de copiar o que dá certo lá fora.
STF: uma diferença de mil vezes
Uma das grandes diferenças entre a SCOTUS e o STF é que a primeira, apesar de receber milhares de casos anualmente, seleciona menos de 100 processos por ano para julgar, sempre em decisões colegiadas. O STF julga um número anual mil vezes superior, com frequência em decisões individuais dos ministros (decisões monocráticas, outra jabuticaba).
Enquanto a SCOTUS é um tribunal constitucional, o STF acumula esta função com a de última instância civil e criminal. Enquanto a Constituição americana é enxuta, a brasileira faz um microgerenciamento das nossas vidas, outro fator que contribuiu para os 100 mil processos anuais do Supremo.
Lá, são os afetados diretamente por uma questão constitucional que buscam a SCOTUS. Por aqui, a prerrogativa de meter o bedelho foi dada pela Constituição de 1988 até aos sindicatos, que podem abrir ações no STF junto a uma extensa lista que inclui a OAB, as mesas do Senado e da Câmara, assembleias legislativas, governadores, presidente e partidos políticos. Antes, só o procurador-geral podia abrir essas ações.
Assim, realmente, não tem como dar certo e a juristocracia era inevitável. E os ministros pioram tudo, falando fora dos autos em entrevistas diariamente, se manifestando em questões políticas de uma forma que seria impensável na SCOTUS e defendendo o excesso de 1,61% do PIB que gastamos com o Judiciário.
A última manifestação espetaculosa foi a nota pública do presidente do STF, Luís Roberto Barroso, respondendo a uma crítica da revista The Economist ao tribunal, de uma forma constrangedora, antecipando que acredita que houve uma tentativa de golpe de Estado em 2023 (tema ainda sob julgamento) e acusando a revista de adotar a retórica dos golpistas. O que a revista disse, e está completamente correto, é que o STF tem poderes demais.
Nossa imitação da Carta del Lavoro também saiu piorada
A Carta del Lavoro, marco legal trabalhista de 1927 do líder fascista italiano, Benito Mussolini, tinha como objetivo provar para os trabalhadores que eles não precisavam apostar em saídas comunistas para obter direitos.
Todos sabem que a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) foi uma forma de Getúlio Vargas imitar Mussolini. Essa mímica, mais uma vez, foi imperfeita.
Na Itália, a Carta, composta por 30 artigos ou declarações, só ganhou força como lei em 1941 e foi revogada em 1944. Sua filha bastarda, a CLT, engessa o mercado de trabalho brasileiro há 82 anos e é composta de 922 artigos e mais de 200 dispositivos.
Resultado: hoje o Brasil tem 40% de sua força de trabalho na informalidade, segundo o IBGE — mais de 40 milhões de pessoas —, enquanto a Itália tem 12,5%, segundo o ISTAT (Instituto Nacional de Estatística da Itália).
Outra ideia associada que imitamos dos fascistas foi o modelo corporativista de sindicalismo com controle estatal, codificado na CLT. Foi o que nos deu um ecossistema de mais de 17 mil sindicatos até 2017, com baixa representatividade e vivendo do absurdo imposto sindical, que violava a Declaração Universal dos Direitos Humanos ao obrigar todos os trabalhadores a participarem dessas agremiações.
Nossa imitação caríssima do Imposto sobre Valor Agregado
Para quem não é anarquista ou anarcocapitalista, algum tipo de imposto é tolerável. Dos vários modelos possíveis de tributação, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) tem funcionado bem na França e na Europa em geral, por unificar a cobrança, reduzir a cumulatividade e simplificar o cumprimento fiscal.
A Reforma Tributária trouxe o IVA para o Brasil, mas daquele jeito: introduzindo a jabuticaba do IVA duplo, separado em Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS). A implementação está prevista para 2027. Vai dar certo? Há quem tenha dado boas-vindas a um sistema mais simples. Mas o pagador de impostos pode estar interessado em avaliar por este critério: a alíquota projetada, de 27%, será a maior do mundo.
Lei de Acesso à Informação
Nossa LAI, imitação da FOIA (sigla em inglês para “Lei de Liberdade de Informação”) dos americanos, também foi uma foto de baixa resolução da imagem original.
Basta perguntar a qualquer repórter mais abelhudo. Meu amigo David Ágape, jornalista investigativo, não teve sucesso em usar a LAI nem para descobrir qual é o número exato de presos do 8 de Janeiro.
Respostas a solicitações com base na LAI com frequência são incompletas, demoradas ou completas negativas genéricas. Há o fenômeno de os funcionários estatais se fazerem de “loucos”, compreendendo “mal” as solicitações mais simples.
Se temos um Portal da Transparência que funciona para algumas coisas, é praticamente um milagre.
Outras emulações mulambentas
Ombudsman (provedor de Justiça): invenção da Suécia, traz independência, poder de investigação e correção de abusos administrativos. Versão brasileira: ouvidorias públicas que são subordinadas ao órgão alvo da reclamação, têm poder limitado, dão respostas burocráticas e com frequência sem solução para o problema.
Licenciamento ambiental: criação dos Estados Unidos para ter um processo claro, com prazos e critérios técnicos previsíveis para equilibrar desenvolvimento econômico com proteção ambiental. Versão brasileira: nosso licenciamento ambiental sofre da nossa famosa insegurança jurídica, competências fragmentadas dos órgãos, inexistência de prazos rígidos e uma demora média de sete anos.
Voto proporcional de lista aberta: sistema que surgiu na Finlândia e na Bélgica para equilibrar a escolha do eleitor entre o partido e o candidato. Funciona bem em um contexto em que os partidos são poucos e bem estruturados. Versão brasileira: não tinha como dar certo no Brasil, com sua hiperfragmentação partidária em mais de 30 legendas, presidencialismo de coalizão, campanhas personalistas e caras.
Tribunal de Contas (corte de auditoria independente): essa ideia herdamos de Portugal, mas há implementações em outros países da Europa. É para fiscalizar gastos públicos e responsabilizar gestores, com independência técnica. Versão brasileira: os tribunais de contas daqui sofrem indicações políticas, escândalos de corrupção e falta de independência. Já viu a lista de convidados para o casamento do presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, ano passado? Bastante esquisita.
Serviço público meritocrático com avaliação de desempenho: esta ótima ideia veio do Reino Unido e dos Estados Unidos. Os funcionários públicos têm proteção contra ingerência política, mas passam por avaliações regulares de desempenho, com possibilidade de demissão se não estiverem entregando resultados. Versão brasileira: mal dá para dizer que essa ideia realmente foi imitada no Brasil. Se foi, ficou só na retórica, pois ainda reina por aqui a Lei 8.112/1990, que deu “estabilidade ampla” ao servidor, com ausência de avaliações e blindagem contra demissões por falta de desempenho.
A demissão de servidores públicos por trabalho insuficiente está na Constituição desde o começo dos anos 2000, mas sem regulamentação. Em 2020, a Controladoria-Geral da União apurou que nos 17 anos anteriores quase oito mil servidores públicos foram expulsos de seus cargos, mas quase nenhum deles por desempenho insuficiente. Mais de cinco mil saíram por denúncia de corrupção. Só 3% foram demitidos por “desídia”, ou seja, ociosidade, indolência ou preguiça.
Sistema Único de Saúde: o nosso SUS foi imitado do NHS (Serviço Nacional de Saúde) britânico. Por lá, há um financiamento robusto com 10% do PIB, gestão centralizada e acesso universal sem pagamento extra. Na versão brasileira, é subfinanciado (4% do PIB), as filas são ainda mais longas que as do NHS e a qualidade e cobertura entre regiões são muito variáveis.
Por que somos assim, mímicos tão ineptos? Deixo a resposta para os antropólogos e cientistas políticos. Não quero imitá-los oferecendo uma resposta mal-acabada aqui. Já basta o SUS, a CLT e o STF.
Ótimo artigo, que demonstra a disfuncionalidade do Estado Brasileiro, e como isso afeta o bom senso das pessoas envolvidas na gestão pública, e desperta o pior de tantas outras, que se aproveitam da falta de ordem.
O Cláudio Dantas presta um excelente serviço à Nação, trazendo temas como este à luz, tal como ocorreu com artigo de minha lavra (https://claudiodantas.com.br/a-falencia-das-entidades-institucionais-e-o-resgate-do-federalismo-pleno/) no qual, demonstro causa, efeitos e solução.
A disfuncionalidade das entidades ionstitucionais citadas pelo autor do artigo ora comentado, é realmente efeito de um Estado mal organizado, centralizado excessivamente, e mal fundamentado juridicamente, o que nos legou 8 milhões de normas legislativas (IBPT), nmas três esferas de governo e nos Três Poderes.
Não adiante copiar dispositivos que funcionam em outros países se as premissas organizacionais são estruturalmente mal feitas. Boas ideias que funcionam em países com organização funcional mais lógica, acabam virando mais trambolhos disfuncionais, gerando mais cutsos e corrupção.
O Estado só passará a funcionar bem com uma nova estrutura federativa, amplamente descentralizada dentro do conceito de autonomias estaduais e municipais federealista, no qual, as atribuições da União são concedidas pelos entes subsidiários que formam a Federação. O “federalismo” brasileiro (aspas propositais e autoexplicativas), mantem o poder centralizado, com potencial centrípeto que está nos levando a um Estado totalitário. O movimento nesse sentido mais alarmante é o que prevê a Reforma Tributária já aprovada, que vai concentrar 100% de todos os tributos recolhidos no Governo Central. Este estabelecerá um comité que poderia ser chamado de soviet, para fazer a “redistribuição” de acordo com critérios que vão ser determinados pelas autoridades federais. Será o fim da Federação.
Infelizmente o conhecimento dos conceitos de liberdade, autonomia e até dignidade humana (esta baseada nos dois primeiros valores) são desconhecidos dos brasileiros, e será pela ignorância que o País afundará no totalitarismo, de tal forma, que, é provável que o brasileiro comum sequer perceba isso. Desde que não ponham o bode na sala ou no sofá, estará tudo bem. Será?
O quadro é sombrio. É preciso que haja um despertar com um vetor muito forte. Se formos balizar o comportamento social do brasileiro diante de tantas disfuncionalidades que atrapalham sua própria vida com a vida dos cubanos, que vivem sob a miséria há 60 anos e não foram capazes de agir e reagir, o que pensar sobre o nosso futuro? Qual é a perspectiva para um povo que permite que poucas pessoas façam o que estão fazendo (e não preciso dizer quais são), sem mais sequer respeitar qualquer postulado legal? Preocupante.
A informação sobre causa, efeitos e solução, coo revelado no artigo sobre federalismo pleno, precisa chegar a todos. Talvez este seja o vetor do despertar. Nesse sentido, de fato, precisamos de um milagre.