“O sr. Kennedy abraçou teorias da conspiração, curandeiros, charlatães, especialmente no que diz respeito à segurança e eficácia das vacinas. Ele fez de sua missão de vida semear a dúvida e desencorajar pais a darem a suas crianças vacinas que salvam vidas.”
Com essas palavras o senador democrata Ron Wyden, do estado americano do Óregon, abriu ontem (29) a audiência de sabatina de Robert F. Kennedy Jr., indicado por Donald Trump para chefiar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS). RFK Jr. é sobrinho do presidente democrata assassinado John F. Kennedy.
A audiência foi interrompida mais de uma vez por gritos de membros da plateia reagindo às afirmações do sabatinado que acreditam que ele é responsável por mortes de crianças por ter passado anos expressando simpatia por céticos não só quanto às vacinas da covid, mas quanto às vacinas em geral. Os baderneiros foram removidos por policiais, um a um.
Kennedy se defendeu dizendo que abriu e fechou um livro sobre o assunto com a afirmação “não sou antivacina”. Ele disse que vacinou suas crianças, como prova de seu apoio às vacinas clássicas, e acusou o senador Wyden de edição desonesta de uma afirmação que ele fez no podcast de Lex Fridman em 2023.
Wyden teria omitido a parte final da afirmação “nenhuma vacina é segura…”, que teria a qualificação “… para todas as pessoas”. Kennedy complementou que acredita que são completamente seguras as vacinas que usem “vírus vivos”.
Hoje, Kennedy enfrentou mais fogo cruzado no Congresso americano como parte do processo de confirmação ou rejeição como secretário do HHS. “Chamou a atenção mais uma vez a forma como o sr. Kennedy não conseguiu escapar de seu próprio passado sobre as vacinas”, publicou o New York Times há dois minutos. “Às vezes, Kennedy concedeu em termos gerais que as vacinas salvaram vidas, mas sua recusa em dizer que as vacinas não causam autismo está lhe dando prejuízo”.
Meio maluco, sim, mas também injustiçado
Kennedy é uma figura interessante, se não bizarra, com muita história para contar sobre caçadas a ursos e peripécias de sua juventude de mulherengo herdeiro da mais famosa dinastia do Partido Democrata.
É bom não descartar todas as informações desabonadoras coletadas pelos democratas contra Robert Kennedy, pois algumas são verdadeiras. Antes de tratarmos do tema espinhoso de suas posições antivacina, contudo, vamos às injustiças cometidas contra ele.
RFK Jr. é originalmente um advogado dedicado às questões ambientais. Particularmente, contaminações com substâncias tóxicas como os compostos de mercúrio. Como ensina a boa educação em ciência, o mercúrio é um poluente muito preocupante que vai se acumulando na cadeia alimentar, e é tóxico para nosso cérebro.
O político cuida do corpo, visivelmente, com uma forma invejável aos 71 anos, e suas preocupações com a péssima qualidade geral da alimentação americana, que levou à explosão da obesidade, é sincera e genuína. Transformá-lo em um monstro é muito mais difícil do que pensam seus adversários.
Como colocaram os jornalistas Michael Shellenberger e Leighton Woodhouse, “nos EUA pré-Trump, Kennedy, um ambientalista antiguerra, pró-liberdade de expressão, e crítico feroz do poder corporativo, seria considerado por todos um candidato de extrema esquerda”. Certa vez ele chamou pela prisão dos irmãos Koch, que financiam movimentos libertários e de direita. Poderia ser colunista do ICL Notícias!
“Chamar uma pessoa de ‘teórica da conspiração’ é algo poderoso e nefasto”, continuam os jornalistas. “Faz mais que insinuar que a pessoa é crédula ou burra. Sugere que sofre de algum tipo de doença mental, e que não vale a pena ouvir suas opiniões”. Para eles, a rotulação tem como meta o ostracismo e a estigmatização, ou, nas palavras de George Orwell, fazer da pessoa uma “unperson”, cancelada e desumanizada pelos poderes estabelecidos.
Shellenberger e Woodhouse listam sete assuntos em que Kennedy tem razão, mas estão longe de serem bajuladores do político. “É improvável que Kennedy mude de ideia em muitas questões que são importantes para nós, e sua teimosia vem de um tipo de dogmatismo e emocionalismo”, eles escreveram no artigo de junho de 2023. É difícil não acreditar que o desprezo de Kennedy pela energia nuclear e pelas vacinas vem de uma radiofobia e uma quimiofobia subjacentes com origem no medo e aversão por grandes empresas e em ideias pseudocientíficas sobre a pureza do corpo, algo que os cientistas sociais sabem desde os anos 1970”.
O cientista médico Vinay Prasad concorda que Kennedy tem sido injustiçado. O hematologista e oncologista diz que “enquanto algumas de suas opiniões são extremas, é justo debater outras e algumas são corretas”. Prasad propõe um teste rápido para julgar as opiniões do político: “outros países fazem o que ele pensa que os EUA deveriam fazer?”
A resposta é sim para a não-pasteurização obrigatória do leite, a não-recomendação de vacinas contra covid para crianças, a não-fluoridação da água (ainda que Prasad considere fracas as evidências de que a fluoridação nos níveis comuns faz mal, Alemanha, Noruega e Suécia não fluoridam), a não-vacinação de bebês com o imunizante de Hepatite B e o banimento de alguns aditivos nos alimentos, como alguns corantes que a Europa não aceita e são comuns nos EUA.
Uma conversa muito difícil: teorias, hipóteses e o movimento antivacinas
O establishment de saúde, tanto na OMS quanto localmente na postura que chamei de autoritarismo sanitário e hipocondria tirânica durante a pandemia, mereceu parte da perda de confiança do público que sofreu.
Como resumiu o experiente jornalista científico John Tierney, antes da pandemia já sabíamos com alguma segurança que máscaras obrigatórias em populações não funcionam, que lockdowns têm efeitos limitados, que obrigatoriedades médicas têm um passado sombrio.
Com a ascensão da COVID-19 e as oportunidades de abuso de poder e do prestígio da ciência, o establishment fingiu amnésia e fez tudo o que podia na direção contrária à sabedoria estabelecida, a começar pela campanha de difamação aberta por autoridades como Anthony Fauci contra a Declaração de Great Barrington, que chamava por uma abordagem menos autoritária e mais calma. (O karma já esfrega as mãos contra Fauci: um dos autores da declaração poderá chefiar os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA, sob o HHS e acima da posição anterior do médico por décadas.)
Outra parte da perda de confiança do público, contudo, não é merecida. Quando algumas pessoas brincam agora que precisam encontrar teorias da conspiração melhores porque as antigas foram todas confirmadas, recomendo mais cautela. Como resumiu de forma surpreendentemente precisa o desenho cômico para adultos Uma Família da Pesada, sobre o ataque de 11 de setembro de 2001: “foi um bando de sauditas, libaneses e egípcios, financiados por um saudita que vivia no Afeganistão e era acobertado por paquistaneses”.
Certas teorias da conspiração clássicas, como a de que o ataque teria sido feito pelo próprio governo Bush ou por judeus (ideia muito popular entre muçulmanos), são simplesmente e irrecuperavelmente falsas.
E há muita falsidade em alegações sobre vacinas.
Desde que o médico britânico Andrew Wakefield propôs em um artigo de 1998 da revista médica The Lancet que a vacina tríplice viral (para sarampo, caxumba e rubéola) causaria autismo, foi fundado um movimento mais político que científico dedicado a reafirmar essa hipótese. Wakefield foi alvo de investigações que mostraram que ele tinha conflito de interesses ao propor a hipótese, pois lucraria com um teste em desenvolvimento que presume a veracidade da hipótese. Ele nunca mais repetiu o estudo para confirmação, perdeu a licença de médico no Reino Unido em 2010, mesmo ano em que a revista emitiu uma retratação por ter publicado o artigo.
O movimento antivacina tem uma série de crimes em seu currículo, como a ideia estapafúrdia de injetar uma solução de água sanitária, que chamam de “solução mineral milagrosa”, nos intestinos de crianças autistas. O composto químico agressivo danifica o intestino, um tecido intestinal morto é expelido pela criança, e os fanáticos insistem que isso é prova de que as “toxinas” das vacinas estão deixando o organismo.
É muito difícil conversar com os adeptos desse movimento. É como tentar convencer alguém a abandonar sua religião. Falo por experiência própria. Robert Kennedy Jr., contudo, ao negar ou recuar em posições que já teve no assunto, mostra que não é parte do pior desse movimento.
A hipótese de que vacinas poderiam causar qualquer tipo de efeito colateral negativo merece estudo, não censura. Sei muito bem como o establishment mencionado acima buscou censurar a hipótese da origem laboratorial da covid (até hoje sem confirmação completa, mas agora tratada como mais plausível pela CIA), pressão censória com envolvimento de Fauci, e o efeito colateral da inflamação do coração e seu revestimento em jovens do sexo masculino que tomaram as vacinas de mRNA da Pfizer e da Moderna. Cobri os efeitos colaterais das vacinas da covid em textos como este, sobre um estudo com 100 milhões de pessoas, e afirmei que o termo “vacina” para as nanopartículas de mRNA não era inevitável.
Uma resposta comum dos opositores da hipocondria tirânica foi que a ciência não seria feita de certezas, mas de dúvidas. Como o leitor pode descobrir lendo um livro de filosofia da ciência como este que traduzi, não é uma coisa nem outra.
Não há como a ciência ser feitas de dúvidas porque, conforme avança a investigação de um tema, as dúvidas vão diminuindo e uma resposta mais firme vai aparecendo. Se não for impossível, é no mínimo extremamente improvável que surjam evidências que contrariem algo tão bem estabelecido quanto a teoria da deriva continental ou a teoria dos germes – “teoria”, aliás, é o termo escolhido para o melhor produto intelectual da investigação científica, favor não confundir com “teoria” em “teoria da conspiração”, que significa apenas “hipótese” ou “ideia”, sem compromisso com a ancoragem em indícios ou provas.
O problema do autoritarismo sanitário eram suas várias falsas certezas: a favor dos lockdowns e obrigatoriedades de máscaras e vacinas, contra o aproveitamento de drogas baratas no assim chamado “tratamento precoce”. Essas falsas certezas eram consensos fajutos, pois eram resultado de compartilhamento de opiniões e posturas políticas, em última análise. Os consensos genuínos por trás de teorias como a deriva continental decorrem da convergência de cabeças que trabalham de forma independente e têm até incentivo para competir entre si e provar que a outra está errada.
Finalmente, os consensos genuínos da ciência são um sintoma de que as teorias são boas, não um pré-requisito da qualidade delas. Este foi outro erro dos autoritários sanitários: o apelo a supostos consensos que nada mais são que apelos à autoridade falaciosos. O que diz se um cientista está certo contra uma multidão de rivais não é o voto dos rivais, mas os indícios, os dados, as evidências, o mundo concreto. Consensos não são necessários, como apontou o próprio Albert Einstein, e ciência não é democracia.
A solução para falso conhecimento é conhecimento verdadeiro. O que sabemos sempre tem defeitos, mas há respostas melhores que outras. E a conclusão de que vacinas não causam autismo é a melhor conclusão disponível até agora. Temos estudos com centenas de milhares de crianças que não encontraram esse efeito.
Por exemplo, este estudo publicado por três cientistas australianos na revista Vaccine, em 2014, citado mais de 900 vezes em outros estudos, incluiu mais de 1,2 milhão de crianças e concluiu que “vacinações não são associadas ao desenvolvimento do autismo ou de transtorno do espectro do autismo”. Importantemente, o estudo analisou o timerosal, um composto orgânico que contém mercúrio e foi descontinuado entre os ingredientes. O timerosal explica sozinho como o advogado ambientalista Kennedy foi atraído pelas ideias de Wakefield.
Se o leitor procurar, achará estudos individuais que defendam o contrário, que há evidências de que o timerosal causa autismo. É aqui que conta alguma formação científica: é preciso saber a diferença entre estudos individuais com amostras limitadas e grandes revisões e reanálises como a dos australianos. Em muitas áreas da ciência, é normal haver estudos afirmando coisas contrárias. Tudo depende da qualidade de suas amostras e de seus métodos. Revisões existem para conciliar a mensagem lida no texto bruto da natureza, para resolver as aparentes contradições.
Como disse Vinay Prasad, até mesmo na posição antivacina de Kennedy há algo recuperável, se formos generosos com ele, em vez de birrentos e belicosos, como estão sendo os democratas.
“É verdade”, escreveu o cientista para o jornal de centro e antiwoke de Bari Weiss, “que nos EUA e no resto do Ocidente houve um crescimento chocante do autismo infantil, mas, como disse Jill Escher, mãe de dois filhos com autismo severo, ‘todo estudo epidemiológico no assunto confirmou zero associação entre o status de vacinação e o desenvolvimento do autismo’. Não sei o que está causando o crescimento do autismo e hesitaria em arriscar uma resposta. Mas concordo com RFK Jr. e Escher que o aumento do autismo infantil precisa ser estudado de maneira mais formal”.
Que, se confirmado à frente do HHS, Robert Kennedy Jr. aplique sua grande energia não em afirmar falsas certezas, mas em investigar mais. E, onde a ciência reduziu as dúvidas e formou consensos genuínos, como nos malefícios da obesidade, que ele tenha sucesso em aplicar o conhecimento científico com o poder do Estado, dessa vez sem autoritarismo.