Moraes tem sido acusado de usar a prisão preventiva de Cid para extrair sua delação contra Bolsonaro
Não é novidade e nem surpresa para ninguém que meios escusos, notadamente a prisão preventiva ou a ameaça de sua decretação, podem ser empregados para forçar o investigado ou acusado de algum delito a delatar alguém em especial.
A questão é como se prova a ausência da voluntariedade na delação premiada, que é causa de sua nulidade e até mesmo de ilicitude, se proveniente de ação criminosa (vide links abaixo).
É certo que, em uma situação hipotética, de nada adiantará questionar o delator acerca de eventual coação para a realização do acordo de colaboração (ou delação) premiada, justamente porque foi firmado contra a sua vontade, que se encontra submissa à do coator, que pode ser um delegado de polícia, membro do Ministério Público e até mesmo do próprio Poder Judiciário, cujo magistrado, pela legislação, possui a função de homologar, após constatar que o acordo foi realizado de forma voluntária.
Com efeito, normalmente a coação para a realização do acordo deverá ser provada por meio de indícios, que podem se encontrar dentro e, não raras vezes, fora dos autos do processo.
Justamente para se aferir a voluntariedade do acordo, a legislação recomenda seja o ato filmado. E, neste caso, pelo teor das perguntas e das respostas, é possível, muitas vezes, ter-se uma ideia da lisura do ato.
Claro que a ameaça contra o delator pode ocorrer antes da realização do ato. Assim, fica muito mais difícil constatar pelo mero interrogatório do delator a ausência de vontade. Nestes casos, cabe à defesa buscar elementos outros que possam demonstrar o constrangimento indevido para a realização da delação.
INDÍCIOS DE COAÇÃO
Isso pode ser feito mediante conversa com amigos ou mesmo familiares do delator, podendo, inclusive, ser tomado por termo suas declarações, reconhecendo-se a firma, e até mesmo ser lavrada escritura pública do declarado para demonstrar a lisura do ato, o que é muito melhor.
A defesa não pode se limitar a acreditar piamente nos órgãos da persecução penal, uma vez que um deles pode ser o próprio coator. Não estou a dizer que já vi isto ocorrer, mas é uma possibilidade que não pode ser descartada.
Tal proceder pode configurar, além de evidente abuso de autoridade (art. 13, III, da Lei nº 13.869/2019), o crime de tortura, previsto no artigo 1º, inciso I, alínea “a”, da Lei nº 9.455/1997, com pena de dois a oito anos de reclusão, que tem a seguinte redação:
“Art. 1º Constitui crime de tortura:
I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental:
- a) com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa”.
O que pode ocorrer mais comumente é a pessoa ser presa cautelarmente e, de forma direta ou indireta, ser-lhe dito ou dado a entender que só será libertada se confessar o crime investigado e delatar alguém, uma ou mais pessoas.
Ou também podem ser ameaçados de prisão, devida ou indevida, familiares ou outras pessoas a ela ligadas por estreitos laços de afeição.
Cuida-se de evidente constrangimento indevido, com o emprego de grave ameaça (direta ou indireta) para a realização do acordo de delação premiada, em regra legal, mas que passa a ser ilegal e criminoso, por conta do modo de execução para sua realização.
Ninguém pode ser forçado a realizar ato jurídico (acordo de colaboração premiada) que não queira, o que configura constrangimento ilegal a prestar informações e a confessar a prática delitiva, podendo, inclusive, incriminar outras pessoas falsamente, a caracterizar o delito de tortura.
Interessante, inclusive, que, logo em seguida à realização do acordo, o colaborador (delator) pode ser solto e, caso descumpra o acordado, será preso novamente, cuidando-se de fortíssimos indícios da ocorrência do constrangimento ilegal à realização do ato.
Este importantíssimo meio de prova não pode ser mal-empregado e subverter regras processuais para a busca, por qualquer meio, de provas para a condenação de alguém.
E, como já ocorria no período da inquisição, boa parte das vezes a pessoa acuada e ameaçada confessa qualquer coisa e mente em causa própria, o que é típico do instinto de autopreservação de todo ser humano.
Prova assim produzida é manifestamente ilícita, além de criminosa.
AMPLA DEFESA
Saliento que a ampla defesa permite a busca destas provas pelo advogado, que, certamente, não pode se valer de meios escusos, como a interceptação telefônica ilegal ou o hackeamento de smartphones e computadores em geral.
Em direito, por mais nobre que seja o motivo, os fins não podem justificar os meios, sob pena de flagrante violação ao devido processo legal, uma das mais importantes garantias constitucionais de todo país em que impera o estado democrático de direito.
Quer saber mais, assista ao vídeo e leia os artigos constantes dos links abaixo:
https://youtu.be/i5RakG-dgbY?si=_N0dUN2kxCizHP8M
https://www.jusbrasil.com.br/artigos/colaboracao-premiadaea-voluntariedade/3080915611
Autor: César Dario Mariano da Silva – Procurador de Justiça – MPSP. Mestre em Direito das Relações Sociais – PUC/SP. Especialista em Direito Penal – ESMP/SP. Professor e palestrante. Autor de diversas obras jurídicas, dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal, Manual de Direito Penal, Lei de Drogas Comentada, Estatuto do Desarmamento, Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade, publicadas pela Editora Juruá.