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Casta Processual: A Ordem dos Mais Iguais do Brasil

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Na reunião da OAB-SP, o presidente Leonardo Sica vocalizou um sentimento de surpresa, talvez até de indignação, diante da postura de magistrados de primeira instância que vêm enfrentando, de ofício, a constitucionalidade da nova Lei nº 15.109, de 13 de março de 2025. Disse ele, segundo notícia publicada no Estadão:

“Nos chamou a atenção a disposição de juízes de primeiro grau em enfrentar, de ofício, a constitucionalidade da norma. É algo incomum.”

A declaração surgiu no contexto de críticas à resistência judicial à recente lei que dispensa os advogados do adiantamento de custas em ações de cobrança e execução de honorários. Segundo o mesmo jornal, Sica afirmou que juízes “têm rejeitado a lei das custas”, sancionada por Lula no mês anterior, e que a OAB-SP está elaborando material para auxiliar advogados a recorrerem dessas decisões.

Diante do espanto institucional, cumpre lembrar o óbvio: todo juiz tem competência para declarar a inconstitucionalidade de uma norma, inclusive de ofício, nos casos concretos em que esteja evidente a colisão entre a regra e a Constituição. Trata-se de exercício legítimo do controle difuso de constitucionalidade, previsto implicitamente no artigo 5º, inciso XXXV, e no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, e reconhecido historicamente como mecanismo necessário à preservação da supremacia do texto constitucional.

No controle difuso, a inconstitucionalidade de uma norma é tratada como questão prejudicial à solução do caso concreto, o que impõe ao juiz — por dever funcional — o afastamento da regra inferior que viole preceito constitucional. O artigo 485, inciso VI, do Código de Processo Civil, autoriza o juiz a extinguir o processo sem resolução de mérito quando verificar “ausência de pressupostos de constituição e de desenvolvimento válido e regular do processo”. E o artigo 489, §1º, inciso V, do mesmo diploma reforça que uma decisão será considerada não fundamentada quando deixar de enfrentar eventual alegação de inconstitucionalidade, ainda que implícita. Um Estado Democrático de Direito não pode admitir que seus juízes sejam autômatos aplicadores de textos inconstitucionais.

Logo, não há qualquer irregularidade ou exceção quando um juiz decide, de ofício, afastar a aplicação de uma norma que fere a Constituição. Ao contrário: ele cumpre sua função institucional. O que espanta, portanto, não é o ato de controle — mas o fato de que uma lei tão flagrantemente inconstitucional tenha sido aprovada, sancionada e agora receba apoio institucional como se fosse expressão legítima do Direito.

A Lei nº 15.109/2025 cria um privilégio processual sem qualquer justificativa constitucional. Em vez de reconhecer um direito vinculado à dignidade ou à proteção de vulnerabilidades de indivíduos perante o Estado, ela concede um benefício puramente corporativo, fundado exclusivamente na condição profissional do requerente. Nas ações de cobrança e execução de honorários advocatícios, o advogado fica automaticamente dispensado de pagar as custas no início do processo, postergando esse encargo para o final da demanda. Ao término, caberá ao réu ou executado arcar com as despesas, caso se conclua que deu causa à ação — o que, na prática, transforma o benefício em vantagem presumida para o autor, antes mesmo do contraditório. E não é só: vencendo a causa, o advogado ainda terá, é bom lembrar, direito a novos honorários de sucumbência, cumulativos com aqueles que já está cobrando. Assim, o benefício inicial se converte em sistema premiado — em que o risco é alheio, e o lucro é próprio.

Esse tipo de privilégio afronta contundentemente o artigo 5º da Constituição, que consagra o núcleo dos direitos fundamentais no Brasil — um núcleo que tem origem, em sua essência, nos direitos naturais negativos: vida, liberdade e propriedade. A igualdade perante a lei, por sua vez, é um princípio republicano que decorre diretamente da obrigação estatal de proteger esses direitos sem distinções arbitrárias. Ela reforça que os direitos naturais não pertencem a coletividades abstratas, mas a cada um de nós, individualmente, como seres livres e responsáveis. Nenhum desses valores autoriza um tratamento diferenciado para o autor de uma ação apenas porque ele pertence a determinada classe profissional. Muito menos quando esse tratamento resulta em ônus automático para o réu, antes mesmo do contraditório e sem qualquer filtro de razoabilidade. A Constituição protege o cidadão contra o arbítrio do Estado — e também contra o arbítrio legal travestido de política pública.

Do ponto de vista do constitucionalismo republicano, essa norma fere os pilares estruturais da Constituição. A igualdade republicana não se mede por status corporativo, mas por justiça na distribuição dos encargos do processo. O Estado existe para preservar a liberdade, não para construir castas privilegiadas. A separação de poderes também está em jogo quando o Legislativo cria vantagens materiais para uma classe em detrimento das demais, transferindo ao Judiciário o ônus de restaurar o equilíbrio institucional por meio do controle de constitucionalidade.

No plano da presunção de liberdade, o vício da norma não está na possibilidade de o réu ser condenado ao final — pois esse risco é inerente ao processo civil —, mas no privilégio que ela cria para uma única classe profissional. O advogado é dispensado de pagar as custas iniciais em ações que envolvem os seus próprios honorários, o que representa uma espécie de subsídio estatal à sua atividade, sem qualquer justificativa baseada em vulnerabilidade ou interesse público. Nenhum outro profissional tem esse benefício. Um engenheiro que não receba seus honorários, por exemplo, precisará contratar um advogado e arcar com as custas da ação. Já o advogado, ao cobrar os seus, é isentado por lei. Cria-se, assim, um sistema desigual, em que o operador do Direito se beneficia de uma vantagem econômica institucionalizada, em detrimento da isonomia entre os cidadãos.

Essa distorção não é neutra. Ela altera os incentivos. Reduz a cautela de quem propõe a ação. Estimula litígios aventureiros. E cria um ambiente institucional em que a advocacia passa a litigar com um benefício econômico que nenhuma outra classe profissional possui — um subsídio estatal travestido de prerrogativa processual. Em uma economia já saturada de ineficiências, esse tipo de intervenção legislativa gera externalidades negativas, agrava a assimetria entre as partes e desorganiza o sistema como um todo.

É exatamente diante de normas assim que se revela a importância do que Randy Barnett denominou Judicial Engagement — o engajamento ativo, fundamentado e responsável do Judiciário na defesa da Constituição. Ao contrário do Judicial Abdication, que aceita passivamente qualquer escolha legislativa sob o pretexto de deferência democrática, o Judicial Engagement exige que os juízes enfrentem as leis com seriedade constitucional, presumindo a liberdade do indivíduo e exigindo que o Estado justifique qualquer restrição ou privilégio. A Lei nº 15.109, ao criar uma exceção corporativa sem base nos direitos naturais nem na estrutura republicana da Constituição, deve ser tratada justamente como aquilo que é: uma violação presumida da liberdade, e não um exercício legítimo de política pública. Cabe ao Judiciário rejeitá-la não por ativismo, mas por compromisso com o texto e os princípios constitucionais.

Poderia parecer exagero recorrer novamente a Orwell, mas a insistência é menos literária e mais diagnóstica. Porque há algo de profundamente orwelliano nesse novo capítulo legislativo. A criação de uma “casta processual”, blindada por lei, sob o argumento de “fortalecimento da advocacia”, é uma distorção que beira o cinismo institucional. No Brasil distópico de 2025, a ficção já não se contenta com metáforas. Ela se converte em norma. O que era paródia vira pauta. E o que era exceção transforma-se em regra. Como diria um velho ditado adaptado ao nosso tempo: todos os cidadãos são iguais perante a lei — mas alguns são mais iguais que os outros.

Infelizmente, somos obrigados a repetir a frase com frequência crescente, pois ela tem se tornado espelho da realidade. Em tempos normais, Orwell era literatura. Em tempos como os nossos, Orwell é jurisprudência. Que fique então o lamento final: Make Orwell Fiction Again.

Sou advogado, e é exatamente por isso que me envergonho dessa lei. Não em meu nome, nem em nome da advocacia que acredita na justiça como valor e na igualdade como princípio. O que me envergonha é a criação desse privilégio maldito, capaz de manchar o nome de nossa profissão em relação às demais, piorando a imagem do advogado perante a sociedade. Quando a lei favorece o advogado contra o cidadão comum, não é o advogado que se engrandece — é o Direito que se apequena.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

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