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A lógica da destruição

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O artigo de Patrícia Campos Mello, publicado hoje na Folha de S.Paulo, sobre o projeto de lei contra as big techs que pretende reformar o antitruste brasileiro, vai além da descrição técnica: ele exemplifica, com notável sutileza, como se constrói uma narrativa pública baseada em distorções cognitivas e inversões argumentativas. A ideia de que a medida representa um avanço civilizacional, ancorado na experiência europeia e voltado à proteção do consumidor, é apresentada com serenidade jornalística. Mas sob essa superfície repousa uma operação discursiva profundamente enganosa — que inverte ônus, disfarça intenções e prepara terreno para um retrocesso institucional ainda mais profundo, travestido de modernização.

Combinando heurísticas como o viés de autoridade europeia — que atribui legitimidade automática a modelos externos — e o apelo emocional à proteção do consumidor, o texto constrói uma moldura confortável: regular é proteger, limitar é equilibrar, intervir é civilizar. A matéria descreve o projeto como uma medida técnica, que permite ao CADE impor “correções de conduta” a empresas com “relevância sistêmica”, de forma ex ante. Mas não há qualquer problematização sobre o significado prático dessa estrutura, nem sobre o impacto de submeter plataformas digitais bem-sucedidas a um regime de vigilância preventiva.

Patrícia menciona que o Cade se inspira na legislação europeia, mas não questiona o óbvio: a Europa é hoje um continente estagnado digitalmente. Produz normas, não inovação; diretrizes, não disrupções. Não gerou uma única big tech de relevância global, e hoje serve de modelo apenas para quem confunde regulação com desenvolvimento. Essa referência, aceita sem crítica, revela uma das falácias centrais do artigo: a de que replicar estruturas regulatórias complexas nos aproxima da modernidade, quando o que realmente faz é prender o país em uma teia de amarras que inibe a competição e encarece a inovação.

Embora a matéria mencione, de passagem, que a proposta enfrenta críticas de representantes do setor privado, como a Abranet, o foco da narrativa é evidente: tratar a medida como um aprimoramento normativo. Mas não é. Trata-se da formalização de um protecionismo estrutural, que abandona a lógica da livre concorrência para instituir uma política de suspeição permanente. A empresa eficiente se torna culpada por definição. O sucesso vira indício de abuso. A regulação passa a funcionar como instrumento de contenção e, por consequência, o mercado se retrai. O resultado será previsível: aumento dos custos, fuga de investimentos, empobrecimento da experiência digital do consumidor e paralisação do ambiente de inovação.

Além disso, o projeto viola garantias constitucionais elementares. Ao presumir que determinadas empresas devem ser submetidas a obrigações e limitações com base em sua “relevância sistêmica”, sem ato ilícito previamente comprovado, subverte-se o princípio da legalidade (art. 5º, II da Constituição), corrompe-se o devido processo legal (art. 5º, LIV) e se esvazia o direito à livre iniciativa (art. 1º, IV e art. 170). Trata-se de uma estrutura que autoriza punições sem infração, sujeições sem contraditório, restrições sem fundamentos objetivos. É uma inversão do Estado de Direito: em vez de a lei proteger o cidadão contra abusos do poder, cria-se uma engenharia jurídica que autoriza o poder a agir contra quem obteve êxito no mercado — como se sucesso fosse sinônimo de ameaça.

Sob a perspectiva de uma Constituição Republicana — como propõe Randy Barnett em Our Republican Constitution — esse tipo de arranjo normativo inverte a ordem correta da legitimidade constitucional. Em vez de reconhecer que os direitos individuais precedem o Estado e que o papel do governo é protegê-los, o projeto assume a lógica da Constituição Democrática, na qual os direitos decorrem da vontade da maioria e são modulados pelos seus representantes. O Estado deixa de ser agente do povo para se tornar seu senhor, convertendo a soberania popular individual em submissão coletiva. A presunção de liberdade dá lugar à presunção de controle. E quando a Constituição escrita deixa de limitar os poderes delegados e passa a ser moldada por eles, o que se perde não é apenas o texto — é o próprio fundamento da República.

A comparação que proponho, embora ausente do texto de Patrícia, é com as novas tarifas comerciais impostas por Donald Trump, que entraram em vigor neste ano de 2025. Essas tarifas, ainda que criticadas por sua natureza protecionista, operam sob uma lógica de reciprocidade e estratégia: visam pressionar parceiros comerciais e podem ser suspensas mediante contrapartidas. Elas são duras, mas negociáveis. Já a regulação proposta pelo projeto brasileiro — inspirada no modelo europeu que a matéria celebra — é definitiva, unilateral e inflexível. Não se trata de correção de rota, mas de controle estrutural. Não é um mecanismo de mercado, mas de comando administrativo.

A narrativa de que tudo isso é feito em nome do consumidor precisa ser desmascarada. O Estado, ao se vestir de defensor da coletividade, assume o papel de tutor das escolhas alheias e guardião daquilo que considera ser o bem comum. A intervenção se mascara de proteção, mas seu efeito é de sufocamento. A concorrência, apresentada como objetivo, vira apenas pretexto. E o que se ergue, no lugar da liberdade de empreender, é uma lógica de destruição silenciosa — onde o sucesso é vigiado, a eficiência é punida e o mérito é submetido à autorização estatal.

Ao tratar esse projeto como uma modernização, o artigo de Patrícia não apenas adota sem reservas a retórica dos propositores da medida, como omite os riscos profundos que esse tipo de estrutura representa. O verdadeiro antitruste não é o que combate o sucesso, mas o que combate privilégios criados artificialmente. Não é o que impõe presunções contra empresas bem-sucedidas, mas o que garante liberdade para competir. E o que o Brasil precisa, neste momento, não é importar a fadiga regulatória da Europa, mas resgatar o valor da liberdade como motor de inovação, eficiência e prosperidade.

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

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