O terço dos infernos. Não um terço de oração ao diabo, mas uma das três partes do que produzimos, tomada à força pelo Estado. Seria assim que os inconfidentes mineiros chamariam a carga tributária de 32,3% do Produto Interno Bruto no Brasil, anunciada pelo Tesouro Nacional na semana passada. É a maior em 15 anos e vem principalmente dos impostos federais, ou seja, do governo Lula.
Mas alguns especialistas alegam que é uma “falácia” dizer que pagamos imposto demais. É o que diz um livro encomendado pelo Comsefaz (Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e do Distrito Federal… perdi o fôlego só de escrever). A obra, com título adocicado “Solidariedade Fiscal”, é assinada pelos economistas Pedro Humberto Carvalho, Claudia de Cesare e Alexandre Cialdini.
A estratégia argumentativa de Carvalho e colaboradores é “ajustar” a carga tributária levando em conta a economia informal, ou seja, as dezenas de milhões de brasileiros que trabalham sem carteira assinada e sem registro de pessoa jurídica. A informalidade representa 33% do PIB, segundo o Banco Mundial, o que equivale a trilhões de reais. Levando isso em conta, a arrecadação cai para cerca de 24% do PIB.
Como o cálculo do PIB exclui essa riqueza informal, o denominador da conta fica menor, “e o resultado é um número de arrecadação agigantado”, disse o diretor institucional do Comsefaz, André Horta, ao portal UOL. Ele escreveu o prefácio do livro.
Os 24% ainda são quase um “quarto dos infernos”, mais pesado que o “quinto dos infernos” que tanto revoltou os inconfidentes: 20% de imposto sobre o peso do ouro extraído no Brasil no século XVIII.
Especialista discorda
Conversei a respeito da notícia do livro com o doutor em economia Claudio Burian Wanderley, que leciona na Fundação João Pinheiro e na PUC Minas. Ele tem mais de 30 anos de experiência em finanças e políticas públicas.
“Não é um argumento válido”, disse o especialista a respeito da mudança do PIB no denominador da carga tributária. “As atividades informais são consideradas, sim, no cálculo do PIB. Esse cálculo é complexo e naturalmente imperfeito, tanto no montante das atividades formais quanto nas informais”.
Ou seja, o denominador maior do PIB apresentado provavelmente está contando, ao menos em parte, a produção econômica informal duas vezes! Um motivo para isso é que os informais já pagam impostos indiretos com o consumo, por exemplo. O Fundo Monetário Internacional tem um nome para o fenômeno: double counting, ou seja, contagem dupla. Assim, infla-se o denominador e dá-se a falsa impressão de que a carga tributária é menor.
“Somos um país pobre”, explica Wanderley. “É importante observar o percentual da renda que o cidadão médio paga ao governo”. E há outro problema: os salários brasileiros são baixos e “o custo dos serviços públicos aqui também é menor”.
Ele responde aos outros argumentos dos autores do livro. Por exemplo, “o tamanho da carga tributária é sim explicado pelos gastos sociais”. Para o economista, “isso mostra como cada centavo gasto importa. E programas ruins e gastos desnecessários não deveriam ocorrer — temos que colocar uma lupa nos gastos públicos continuamente”.
Wanderley reafirma que nossa carga é alta e que “maior carga tributária diminui o crescimento. E é meio óbvio”. Imagine que alguém monta uma padaria para ganhar dinheiro, ele nos convida a pensar. “Quanto maior for a fatia que o governo pega das minhas receitas, menor a chance de o investimento ser rentável. Ou seja, maior carga tributária implica menor retorno líquido para o capital e menor investimento”.
Em outras palavras, se fosse verdade que nossa carga tributária é leve ou normal, como apregoa a obra patrocinada pelo Comsefaz, nosso país estaria crescendo mais, não apresentando resultados como estagnação da indústria por cinco meses seguidos.
No Brasil, os produtores econômicos formais são sobrecarregados, arcando com uma carga tributária de níveis escandinavos, enquanto o governo entrega serviços de África subsaariana. Contudo, como sempre observa o cientista político Adriano Gianturco (Ibmec), é um erro achar que o governo é como uma máquina de Coca-Cola em que se coloca um certo valor e se coleta um produto que valha o preço pago.
Não é uma máquina de vender refrigerantes, é mais parecido com um “bandido estacionário” e, assim, merece a desconfiança que dispensamos a bandidos em geral. Pode ser um bandido “necessário”, mas quanto mais pudermos reduzir sua influência nas nossas vidas individuais, especialmente nas atividades econômicas, melhor.
A pergunta ignorada: por que existe tanta informalidade?
A pergunta raramente feita por economistas pró-governo é por que razão há tanta economia informal. Como todo fenômeno sociológico, as causas são múltiplas, mas não dá para negar que é justamente a carga tributária pesada que afasta a contratação de mais pessoas no regime CLT, por exemplo.
Conheço comerciantes e artesãos muito produtivos que jamais contrataram ajudantes formalmente porque, graças aos impostos, encargos e obrigações, um funcionário acaba tendo o custo de dois. Ora, se você pergunta a um funcionário se ele prefere ganhar determinado valor dentro da lei ou o dobro informalmente, muitos optarão pela segunda alternativa.
Em entrevistas que fiz com comerciantes do setor dos atacados, no interior de Minas Gerais, eles relatam que cada vez mais encontram entre seus clientes varejistas o pedido de vender produtos sem a nota fiscal, para driblar a fome de imposto do governo, agravada pela inflação e a queda na demanda dos consumidores. Estamos falando de produtos básicos, de alimentação.
Se a venda de produtos básicos está assim, imagine como está o mercado que depende de atender necessidades dos consumidores que não são estritamente necessárias: estética, entretenimento, turismo. Como informado por este portal, o programa governamental Voa Brasil, que oferece a aposentados passagens aéreas pelo valor irrisório de até R$ 200, atingiu apenas 1,18% da meta de vendas de três milhões de bilhetes. O ministro dos Portos e Aeroportos insistiu que isso é um sucesso.
Contabilidade criativa já foi vista na Europa
Em 2010, a União Europeia, em seu Sistema de Contas, pediu aos países membros que atualizassem seus números econômicos oficiais com a informalidade — até aquela que não está só à margem da lei, mas contra a lei. “Ações econômicas ilegais serão consideradas como transações quando todos os envolvidos se engajarem nessas ações por acordo mútuo”, disse o órgão. Ou seja, os países membros incluiriam em seu PIB transações do mercado negro, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e contrabando de produtos. O emprego informal também estava incluído nessa lista.
A ideia era tornar os dados mais consistentes entre países, para poder comparar os que legalizaram a prostituição, como os Países Baixos, com aqueles que a proíbem. Em 2013, de acordo com o economista Friedrich Schneider, a economia informal representava 18,8% do PIB do país europeu médio.
O país europeu mais semelhante ao Brasil era a Bulgária, com informalidade de 31,2%. Os Estados Unidos, com sua riqueza e liberdade econômica invejáveis, tinha apenas 6,6%. O que é melhor: contabilidade criativa que inclui informalidade no PIB, ou a baixa informalidade que vem com a liberdade, porque não se esmaga o pequeno empresário com uma carga tributária pesada e excesso de regulação?
Se for para incluir a informalidade, é bom começar a contar o quanto da economia de Brasília é movimentada pela prostituição, tanto a literal quanto a metafórica.