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Resolução do Conanda pró-aborto tardio é mais “Deep State” no Brasil

Por Eli Vieira

O Brasil é o único país no mundo que obriga crianças a serem vacinadas contra Covid-19. Essa obrigatoriedade não foi estabelecida por nenhum processo democrático de votação dos representantes do povo, mas em uma canetada do Ministério da Saúde (Nota Técnica 118/2023).

Pare para pensar por um minuto na gravidade dessas duas informações. Não foi ideia de ditadores como Kim Jong-Un ou Nicolás Maduro obrigar crianças a tomar vacinas potencialmente desnecessárias para muitas delas. Foi ideia de Nísia Trindade, socióloga e ministra da Saúde do Brasil. A hipocondria autoritária no Brasil chega a superar os sonhos de controle dos déspotas.

Pois aconteceu de novo. Hoje, outro órgão burocrático afastado dos eleitores, o Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente, que é ligado ao Ministério de Direitos Humanos e Cidadania) emitiu uma resolução com o intuito de liberar o aborto para os casos trágicos de meninas grávidas, mesmo que sem o consentimento dos pais dessas crianças que gestam crianças, e independentemente da fase da gestação em que estão.

Quem votou no Conanda para alterar a forma como se aplica o direito à vida no Brasil? Ninguém. Como disse Claudio Dantas, os próprios representantes do governo Lula, durante a votação da resolução, denunciaram que as ambições do documento são ilegais e inconstitucionais. Dantas também deu uma lista de ONGs que integram o órgão: até mesmo a CUT (Central Única dos Trabalhadores), um sindicato, está representada.

A resolução — que passou por 15 votos contra 13 — não deve durar muito, a julgar pelo que aconteceu quando, um mês depois de implementar as vacinas obrigatórias de Covid para crianças, há quase um ano, o Ministério da Saúde lançou uma nota técnica autorizando aborto em caso de estupro para qualquer fase da gestação. A decisão não durou 24h. O desgaste à imagem do governo levou a uma bronca de Lula contra a ministra em uma reunião ministerial, o que a teria levado a chorar ali mesmo. Ao menos uma cabeça rolou no ministério na contenção de danos.

Para repetir: burocratas não eleitos têm um poder desmedido de interferir nas liberdades e direitos dos cidadãos brasileiros. E isso é feito com frequência sob a desculpa da “tecnicalidade”, da expertise: o burocrata que interfere na sua vida tem mais diplomas que você, leigo. Então obedeça.

Foi para conter esse tipo de coisa que os americanos elegeram mais uma vez Donald Trump como presidente no mês passado. Conter os burocratas autoritários é o argumento por trás do termo “Estado profundo” (deep state). No Brasil, essa “profundidade” do Estado é rotina, e completamente normalizada, especialmente agora com o ativismo judicial sem rédeas. Quando o Estado é profundo, os direitos individuais são rasos.

Tese radical: o que diz exatamente a resolução do Conanda

Graças à Gazeta do Povo, que obteve a resolução, pude lê-la na íntegra. O Conanda está trabalhando com os casos de aborto permitido por lei (e “lei” aqui inclui decisão do STF): estupro, risco de vida para a menina gestante e feto anencéfalo.

A parte que trata de ignorar a fase gestacional para o acesso ao aborto é o Artigo 32 da resolução:

“O limite de tempo gestacional para a realização do aborto não possui previsão legal, não devendo ser utilizado pelos serviços como instrumento de óbice [impedimento] para realização do procedimento. Tal parâmetro deve ser considerado exclusivamente para a escolha do método a ser empregado, em conformidade com evidências científicas e conforme recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).”

Ignorar a fase gestacional, ou seja, as propriedades do embrião/feto/bebê, é simplesmente uma tese radical. Nos casos de risco de vida para a gestante e anencéfalo, é uma questão menos saliente, mas é crucial para o caso de a gestação resultar de estupro.

É radical porque até mesmo as pessoas que são favoráveis a descriminalizar alguma forma de aborto se opõem ao aborto nas fases tardias da gestação, presumivelmente porque nelas o feto/bebê desenvolveu características físicas que o tornam uma pessoa digna de direitos, na opinião desse grupo (na opinião de quem é contra em toda situação, já é uma pessoa desde a concepção — o encontro do espermatozoide com o óvulo).

Uma pesquisa de janeiro do instituto Marist Poll mostrou que 80% dos americanos são favoráveis a permitir o aborto, contanto que seja dentro do limite do primeiro trimestre de gestação. Se for depois, são contrários. É a mesma opinião expressada pelo Conselho Federal de Medicina em 2013.

Em se tratando do segundo e terceiro trimestres, a opinião dominante entre os americanos muda totalmente de figura. Dois terços dos americanos se opõem a abortos tardios, mostrou o instituto Rasmussen em abril. Isso inclui uma parte grande daqueles que se dizem “pró-escolha” (a favor da descriminalização do aborto de alguma forma). Outra pesquisa do Pew Research Center, de 2022, mostrou que 67% dos americanos acham o aborto permissível no primeiro trimestre, mas só 36% pensam o mesmo sobre permitir no segundo trimestre, e 20% para os três meses finais da gestação.

Em outras palavras, até em países com décadas de história de uma postura mais “pró-escolha” a tese radical do Conanda de deixar gestações serem interrompidas até quando avançadas é muito impopular.

A menção a “evidências científicas” na resolução do Conanda lembra um trecho da nota técnica que levou à bronca de Lula contra Nísia: “até o nascimento (…) o feto muito provavelmente não é capaz de sentir dor”. Isso é falso, já levou a atrocidades, e a prova está aqui.

As armadilhas fundamentais a serem evitadas no debate do aborto

Como dito acima, as posições sobre a permissibilidade do aborto dependem de como as pessoas avaliam as propriedades do embrião/feto/bebê e potenciais conflitos com os interesses da gestante, como o interesse em não morrer em uma gestação com complicações graves.

Quem acredita que nós já somos pessoas dignas de direitos quando somos uma única célula formada após a fecundação, o zigoto, geralmente acredita também que isso tem algo a ver com uma alma insuflada nessa entidade biológica por Deus. Alguns, no entanto, oferecem argumentos completamente seculares (que não pressupõem crenças religiosas) com base na potencialidade e na formação da individualidade pelo fato físico da concepção.

Certa vez, cobrindo o tema aborto, encontrei um livro de bioética completamente tomista, ou seja, da perspectiva de pensadores que seguem São Tomás de Aquino como líder filosófico (Thomistic Principles and Bioethics, de Jason T. Eberl, Routledge, 2006). Lá, encontrei a posição interessante de uma minoria de tomistas que defendiam que certas formas de aborto não devem ser proibidas ou criminalizadas.

Tomistas são na maior parte cristãos. Portanto, seria uma simplificação grosseira dizer que o debate do aborto é feito de ateus “pró-escolha” de um lado e religiosos “pró-vida”, do outro. Isso é falso, e há diversidade de pensamento tanto entre os contrários à descriminalização quanto aos favoráveis.

Cobri artigos técnicos recentes que atualizam as evidências sobre a capacidade do feto de sentir dor e a crise de consciência de médicos e enfermeiras que realizam o procedimento na República da Irlanda.

O debate é interessantíssimo e é possível de ser feito de forma leve, apesar do tema pesado. Foi o que fiz debatendo em 2022 a minha posição (a mesma do CFM em 2013) com o pensador Francisco Razzo, que é “pró-vida” (defende o critério de direito à vida desde a concepção). Confira nosso debate aqui.

É debatendo que se faz democracia. Não infiltrando órgãos burocráticos do Estado profundo para empurrar teses radicais até para “seu próprio lado”, como certamente é o caso da posição radical de que bebês prematuros dentro do útero podem ser mortos porque tiveram o azar de terem sido concebidos sem o consentimento de sua mãe menina.

Neste caso, passo a concordar totalmente com Razzo e os “pró-vida”: é assassinato. Não acho que estupro, um crime hediondo, se resolve com outro crime hediondo, o assassinato. Se os burocratas autoritários que usurpam o papel de legisladores me obrigarem a escolher entre abortos de gestação tardia e a posição “pró-vida” do critério da concepção, terei que ser pragmático e ficar do lado dos últimos. E então, em quem posso votar contra o Conanda?

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Eli Vieira

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