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Plano de golpe e repercussões penais: traços da LSN em decisões recentes do STF

O jornal O Globo, em 22 de novembro de 2024, publicou a reportagem Bolsonaro indiciado pela PF: entenda o inquérito do golpe em cinco pontos, cujo conteúdo detalha todos os fatos que levaram a Polícia Federal a indiciar o ex-presidente e mais algumas dezenas de autoridades do governo e militares pelos crimes de “tentativa de golpe de Estado, tentativa de abolição do Estado democrático de direito e organização criminosa”.

A finalidade deste breve ensaio é analisar os tipos penais imputados do ponto de vista abstrato e deixar ao leitor subsídios de como poderão se relacionar com os fatos articulados pela Polícia Federal, conforme a versão da imprensa.

Antes, entretanto, é necessário apontar para a mudança legislativa recente que revogou a antiga Lei de Segurança Nacional (LSN) – Lei Federal n.º 7.170, de 14 de dezembro de 1983 –, editada ainda no regime militar, para disciplinar Os Crimes contra o Estado Democrático de Direito no Código Penal, entre os arts. 359-I a 359-T, com destaque para este último.

Art. 359-T. Não constitui crime previsto neste Título a manifestação crítica aos poderes constitucionais nem a atividade jornalística ou a reivindicação de direitos e garantias constitucionais por meio de passeatas, de reuniões, de greves, de aglomerações ou de qualquer outra forma de manifestação política com propósitos sociais.

A intenção do legislador penal foi não abrir mão da proteção em ultima ratio dos bens jurídicos relacionados com as instituições democráticas, sem, entretanto, recorrer a tipificações ultrapassadas e abertas, propícias de serem manipuladas pelo governo de ocasião para perseguir adversários políticos sob o falso pretexto de proteger as instituições democráticas. Essa é a razão lógica do art. 359-T, acima transcrito, quando exclui a ilicitude de condutas que, embora típicas conforme o novo Título XII do CP, tenham por finalidade a crítica aos poderes constitucionais ou a reinvindicação de direitos e garantias constitucionais.

Outros dispositivos também estabelecem distinção entre o texto datado da ditadura militar e o atual:

LSN de 1983 CP – Redação da LF n.º 14.127/2021
Art. 16 – Integrar ou manter associação, partido, comitê, entidade de classe ou grupamento que tenha por objetivo a mudança do regime vigente ou do Estado de Direito, por meios violentos ou com o emprego de grave ameaça.

Pena: reclusão, de 1 a 5 anos.

 

Revogação sem dispositivo análogo no Título XII do CP.
Art. 17 – Tentar mudar, com emprego de violência ou grave ameaça, a ordem, o regime vigente ou o Estado de Direito.

Pena: reclusão, de 3 a 15 anos.

 

Golpe de Estado

Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência.

Art. 18 – Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados.

Pena: reclusão, de 2 a 6 anos.

 

Abolição violenta do Estado Democrático de Direito

Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais:

Pena – reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência.

 

É evidente que a punição excepcional a atos preparatórios com o fim de mudança do “regime vigente e do Estado de Direito”, conforme o revogado art. 16 da LSN, não foi transportada para outro tipo penal no âmbito dessa reforma. A eventual comparação por subsidiariedade em favor dos arts. 288 (associação criminosa) e art. 2º c/c art. 1º, § 1º, da Lei Federal n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013 (organização criminosa), não devem prosperar com supedâneo na doutrina vastamente produzida a respeito desses dois tipos de grupos criminosos organizados.

Isso, porque, em ambos, é necessário que o objetivo do grupo seja a prática de crimes em número e tempo indeterminados, não se confundindo com um engendramento por mais sofisticado que seja para prática de uma ou mais ações criminosas delimitadas. Tal característica apresentada é o que permite distinguir os tipos de associação criminosa e organização criminosa do mero concurso de pessoas (art. 29 do CP).

Em síntese, quanto à conduta descrita no art. 16 da LSN, passou a ser atípica após sua revogação, afinal se limitava a atos preparatórios, que, em regra, não são puníveis.

No que diz respeito ao art. 17 da LSN, há uma certa correspondência com o crime de Golpe de Estado, previsto no art. 359-M do CP. O novo tipo penal é bem mais específico, o que não deixa de representar mais limites ao poder de punir estatal, próprio da inspiração democrática do legislador de 2021.

Do subnúcleo típico mudar, agora se tem depor, com semântica mais precisa, isto é, não é qualquer mudança no regime ou ordem vigentes, mas a retirada violenta do “governo legitimamente constituído”.

A conjugação dos verbos tentar depor não torna o crime unissubsistente tampouco de perigo abstrato. É necessário que a violência ou grave ameaça se consumem em tamanha gravidade apta a levar a cabo o golpe – ou expor a perigo concreto as instituições democráticas –, necessariamente frustrado em um segundo momento para colmatar o núcleo tentar que inaugura a redação do tipo. Essa interpretação decorre da definição de crime impossível (art. 17 do CP) associada ao próprio preceito primário do art. 359-M, quando faz alusão expressa às elementares “por meio de violência ou grave ameaça”.

Com a nova redação (art. 359-M do CP), não se pode adotar uma interpretação de perigo presumido/abstrato em um golpe, é necessário o emprego de meios violentos o bastante para expor a perigo concreto o governo legítimo de ser deposto.

Por fim, no que diz respeito ao art. 18 da LSN, o Supremo Tribunal Federal (Ação Penal n.º 1044 / DF, Rel. Min. Alexandre de Moraes) apontou entre ele e o art. 359-L (Abolição violenta do Estado Democrático de Direito) a relação de continuidade normativo típica, isto é, não ocorrera total ou parcial abolitio criminis.

Esse posicionamento da Suprema Corte não está correto.

Assim como aconteceu com os arts. 17 da LSN e 359-M do CP, houve sim mudança de especialidade no tipo, sendo a redação antiga do art. 18 da LSN muito mais aberta do que a presente no novo tipo de Abolição violenta Estado Democrático de Direito, a começar pelo subnúcleo típico abolir, que não encontra equivalência semântica com impedir.

Enquanto a LSN falava em “tentar impedir (…) o livre exercício de qualquer dos Poderes”, o CP requer “tentar (…) abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”.

Agora, para haver crime, a ação de impedir ou restringir o exercício dos poderes precisa ser ofensiva o bastante a expor as instituições ao perigo concreto de abolição do Estado Democrático de Direito. Antes, bastava que o emprego de violência ou grave ameaça existisse para o crime da LSN se aperfeiçoar, hoje, é preciso que a violência empregada efetivamente impeça ou restrinja o funcionamento de um ou mais poderes constitucionais para que haja a consumação do delito do CP.

É dizer: o acréscimo e a mudança de várias elementares no tipo vigente, além da transferência dos verbosimpedir e restringir para uma posição de subordinação sintática (no gerúndio), implica em abolitio criminis parcial.

Pode-se imaginar que a interpretação gramatical dos dispositivos ficou prejudicada em razão de a Ação Penal n.º 1044 ter como sujeitos passivos do crime apurado os próprios julgadores, afinal não se espera de quem sofre grave ameaça a clareza e equilíbrio necessários para atividades do cotidiano, sobretudo quando envolvam reviver os acontecimentos.

É possível compreender o erro, mas não deixa de sê-lo.

Portanto, os futuros desdobramentos jurídicos que envolvem o noticiado pelo O Globo tendem a repetir as más compreensões da mudança legislativa com sua inspiração claramente limitadora do jus puniendi para transfigurá-la em um instrumento de vingança pública operado pelas – supostas – vítimas.

* Fillipe Azevedo é professor do Curso de Direito da UFRN. Doutor e Mestre pela mesma Instituição. Líder do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia do Crime (DECrim).

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Fillipe Azevedo

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