Nos Estados Unidos, o presidente tem a autoridade de emitir ordens executivas, conhecidas como Executive Orders. Essas ordens são semelhantes às Medidas Provisórias brasileiras, mas com uma diferença importante: elas não precisam ser aprovadas pelo Congresso. Por meio das Executive Orders, o presidente pode implementar políticas, administrar operações do governo federal e direcionar o funcionamento de agências governamentais, desde que respeitem a Constituição e as leis já existentes. Foi utilizando esse mecanismo que Donald Trump, ao reassumir a presidência em 2025, assinou a ordem intitulada Restoring Freedom of Speech and Ending Federal Censorship (“Restaurando a Liberdade de Expressão e Encerrando a Censura Federal”), com o objetivo de defender e garantir a liberdade de expressão no país.
A ordem reflete uma crítica direta à administração anterior, que Trump acusa de ter promovido censura em plataformas digitais. Segundo o documento, entre 2021 e 2025, o governo americano teria exercido influência sobre empresas de redes sociais para moderar conteúdos que não alinhavam com as narrativas oficiais, utilizando pretextos como o combate à “desinformação”. Trump argumenta que essa prática violou a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que garante o direito dos cidadãos à liberdade de expressão sem interferência do governo.
A ordem executiva estabelece como prioridade do governo federal proteger os discursos constitucionalmente garantidos e proíbe agentes públicos de promover qualquer ação que restrinja, direta ou indiretamente, a liberdade de expressão. Além disso, veda o uso de dinheiro público em iniciativas que possam resultar em censura.
Uma das medidas mais significativas da ordem é a determinação para que o Procurador-Geral investigue casos de censura nos últimos quatro anos. A ideia é identificar possíveis abusos do governo nesse período e propor ações corretivas. O relatório com essas conclusões deverá ser apresentado diretamente ao presidente.
Embora o texto tenha um tom incisivo ao acusar a administração anterior de má conduta, ele também inclui ressalvas importantes. A ordem não interfere em poderes já estabelecidos por lei a agências governamentais e depende da disponibilidade de recursos para ser implementada. Além disso, ela não cria novos direitos legais que possam ser usados contra o governo em tribunais.
Na prática, o documento reforça o discurso de Trump sobre a importância da liberdade de expressão como pilar da democracia americana. Sua estratégia, ao priorizar o combate à suposta censura, é claramente voltada para se alinhar com eleitores que enxergam a manipulação es as grandes empresas de tecnologia e o governo federal como ameaças a esse direito fundamental.
Para brasileiros que acompanham a política internacional, essa ordem executiva oferece uma visão interessante sobre como os Estados Unidos lidam com o equilíbrio entre regulação digital, liberdades individuais e os limites do poder governamental. A medida é um lembrete de como a liberdade de expressão é tratada como um direito inegociável em certas culturas, enquanto no Brasil a discussão frequentemente gira em torno de como combater a desinformação sem restringir vozes legítimas. A polêmica é semelhante, mas os caminhos escolhidos para lidar com ela revelam diferenças significativas entre as democracias.
Detalhe importante: no sistema jurídico americano, diferentemente do Brasil, não é possível contestar diretamente uma Executive Order na Suprema Corte dos Estados Unidos (SCOTUS). Questões desse tipo começam obrigatoriamente nos tribunais inferiores (district courts), onde a parte prejudicada deve comprovar que foi diretamente afetada pela medida.
O caso pode seguir para os tribunais de apelação (U.S. Courts of Appeals) antes de, eventualmente, chegar à Suprema Corte, que decide se aceita ou não o caso. Essa estrutura reflete o modelo de “freios e contrapesos” (checks and balances) dos EUA, que exige uma análise judicial escalonada. Isso contrasta com o sistema brasileiro, onde algumas ações, como as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs), podem ser levadas diretamente ao Supremo Tribunal Federal para questionar a constitucionalidade de normas.
Dito isso, vale mencionar que o Congresso pode derrubar ou limitar os efeitos de uma Executive Order (ordem executiva) emitida pelo presidente, mas o processo envolve nuances constitucionais e políticas. O Congresso pode aprovar uma lei contrária à ordem executiva, mas, caso o presidente vete essa legislação, será necessário um quórum de dois terços em ambas as casas legislativas (Câmara dos Representantes e Senado) para superar o veto.
Além disso, o Congresso pode cortar ou negar o financiamento necessário para implementar a ordem, utilizando seu controle orçamentário como ferramenta de contenção. Em alguns casos, pode emitir resoluções conjuntas para anular regulamentações derivadas da ordem executiva, especialmente no campo administrativo. Contudo, a separação de poderes limita a atuação do Congresso, especialmente em áreas onde o presidente detém autoridade exclusiva, como política externa ou funções de Comandante-em-Chefe das Forças Armadas. Esse cenário destaca um equilíbrio complexo entre os poderes Executivo e Legislativo, com implicações relevantes para o direito constitucional e administrativo americano.
Feitos esses esclarecimentos – para mostrar que nenhuma legenda de aluguel vai correr às portas da Suprema Corte, e que há limites para o Congresso derrubar medidas presidenciais –, a ordem de Trump, em última análise, serve como uma tentativa de reverter o que ele vê como uma guinada orwelliana nos Estados Unidos. No livro 1984, de George Orwell, o Estado redefine a realidade ao controlar não apenas o que as pessoas dizem, mas também o que podem pensar, numa distopia onde o Ministério da Verdade manipula informações para garantir o domínio sobre a sociedade. Para Trump, ao garantir que as vozes dissonantes continuem audíveis, ele busca evitar que as redes sociais e o governo se tornem um espelho moderno desse ministério, onde a verdade se dobra à conveniência do poder.
Leonardo Corrêa — Advogado, formado pela PUC-RIO, com LL.M pela University of Pennsylvania, sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti – Advogados e Presidente da Lexum