por Newton Cannito
“Ainda estou aqui” não é um filme político. Pois não há debate político. É um filme de propaganda política.
É uma peça publicitária feita sob encomenda para os dias de hoje. A ideia é fazer propaganda do regime atual, a Nova República, confundida como única possibilidade de democracia.
O combate ao regime militar é o mito fundador da Nova República e, por isso, nos últimos 30 anos fizeram-se tantos filmes e séries sobre o tema. No contexto político de 2025, a ideia do filme é botar medo da volta da ditadura, justificando assim os desmandos do presente. Afinal, é mais fácil lutar contra a ditadura do passado do que perceber a presente.
Dito isso, podemos dizer que é um filme bem realizado. A reconstrução de época é primorosa e Walter dirige muito bem os momentos de tensão dramática, com uma maravilhosa interpretação da Fernanda Torres.
Eu, obviamente, estou muito feliz com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e torci muito também pela Fernanda.
Acho, inclusive, que as críticas e perseguições que o filme sofreu pela direita ajudaram em sua campanha para o Oscar, pois despertaram a militância da esquerda e constituiu uma importante comunidade de fãs. Isso tudo é ótimo. Foi um exemplo de como a polarização pode ser boa para o Brasil. A arte é o espaço certo para polêmicas e radicalizações.
Em política, deveríamos ser mais racionais e menos polarizados, mas em arte e futebol podemos ser mais radicais. Infelizmente, ultimamente, a arte tem gerado poucas polêmicas e isso se reflete na radicalização política.
É, por tudo isso, que tomarei a liberdade de criticar o filme sem dó.
Até agora eu abordei o filme em seus três aspectos possíveis de análise:
a) como obra artística;
b) como obra inserida em um momento histórico;
c) como “sociologia” da arte, analisando as condições de produção.
Os três aspectos revelam muito sobre o audiovisual brasileiro e da sociedade brasileira de hoje. Vou detalhar cada um deles.
A narrativa de propaganda
O filme é uma peça de propaganda política muito eficaz. Segundo a definição de Umberto Eco, a diferença da propaganda para a arte é que a arte é uma “obra aberta”. A narrativa da arte abre espaços de interpretação e deixa dúvidas.
“Ainda estou aqui” é só certeza. A ideologia de um filme é mostrada não apenas pelo que ele conta, mas também pelo que ele deixa de contar.
O filme tem sido elogiado por não tocar em temas políticos e ficar no drama humano e universal. Isso é justamente a estratégia da propaganda: universalizar para convencer a todos.
Afinal, todos se compadecem com a história de uma mãe de família que tem o marido desaparecido e morto. Focar no ponto de vista da mãe retira o debate político.
O filme mostra bem os abusos do regime militar e como o “desaparecimento” é até mais cruel que a prisão. É uma importante denúncia contra os abusos de sistemas autoritários e nos mobiliza para evitar que eles aconteçam.
A primeira meia hora do filme é maravilhosa: uma grande propaganda de margarina. É um mundo de uma família perfeita e feliz. A esquerda, como sabemos, costuma ser crítica à “família burguesa”. Não é o caso aqui. Walter Salles não comete esse erro e não tem vergonha de ser feliz, burguesamente falando. Nesse ponto, o filme poderia ser, até mesmo, um filme conservador.
Mas, de repente, chegam os vilões e destroem tudo aquilo. E ponto. O filme ganha pela emoção e não abre espaço para questionamentos ou reflexões.
“Ainda estou aqui” se insere no subgênero “filme melancólico de esquerda”, que o “Aquarius” já havia lançado com sucesso. É um público garantido e engajado: a juventude de esquerda. O filme soube bem conquistar esse segmento de público que, mesmo pequeno, é um público que costuma ir ao cinema.
Esse subgênero tem algumas regras básicas, como mostrar discos antigos, ter uma trilha óbvia de MPB e, é claro, alguma filmagem em super 8. Como toda publicidade, o filme é um amontoado de clichês do cinema brasileiro. A imagem dela no mar é um clássico do cinema brasileiro, presente em vários filmes. O torturador em crise também já existia no filme “O que é isso, Companheiro?”. A trilha sonora óbvia é outro aspecto bem publicitário.
O que o filme não mostra, no entanto, diz muito sobre a ideologia de uma obra. O filme optou por não revelar claramente os motivos pelos quais Rubens Paiva foi preso. É evidente que o arbítrio e desaparecimento são criminosos. Ninguém é a favor de o Estado sumir, torturar e matar pessoas. Mas, se fosse um filme realmente político, poderia nos explicar um pouco melhor o que Rubens fazia.
O filme não explica. Deixa isso em aberto. A única pista que temos, quando Eunice pergunta isso para um dos amigos, é muito genérica. O amigo diz que não tinha como “não se envolver”, afinal nossos amigos são perseguidos.
Essa opção condiz com a proposta do filme de ser uma propaganda ideológica. Para isso é melhor ver apenas o ponto de vista da esposa, da Eunice. Mostrar os motivos seria dar voz ao outro lado, tornar a narrativa ambígua, aberta. E isso é tudo que uma propaganda não quer.
Essa opção também tira a força de Rubens. Ele deixa de ser um herói que luta pelo que acredita, e se torna apenas uma vítima. No filme ele é, no máximo, uma pessoa que apenas luta para minimizar o sofrimento dos amigos, o dono de uma Ong que tentava dar direitos humanos para perseguidos políticos. O Rubens do filme está mais para o Marcelo Freixo do que para um líder trabalhista dos anos 60.
Quem conhece a história de Rubens Paiva sabe que ele é muito mais potente que isso. Ele foi um deputado que, tal como um herói, deu a vida na luta pelo que acreditava. Ele era do PTB, ou seja, não era “comunista”. Isso para mim é um ótimo sinal. Os comunistas, como sabemos, não queriam derrubar o regime militar, para defender a democracia. Ao contrário, queriam uma nova ditadura do proletariado.
Muitos dos guerrilheiros que o cinema brasileiro constrói como heróis não podem ser considerados heróis da democracia, pois lutavam por uma outra ditadura. Estavam apenas disputando com os militares quem seria o dono da ditadura.
Mas Rubens foi um deputado trabalhista e democrático que lutava contra o imperialismo americano. A CPI que ele coordenou antes do Golpe Militar me remete a uma possível CPI da USAID, modo atual pelo qual o Império americano dominou o Brasil. Hoje, por incrível que pareça, quem luta no Brasil contra o imperialismo não é necessariamente de esquerda.
A esquerda que a família Salles e a família Paiva defendem hoje é uma esquerda globalista, aliada ao imperialismo. É o oposto do que Rubens Paiva defendia.
Me arrisco a dizer que o grande Paiva-pai está feliz com a busca da justiça por sua morte, claro. Mas está triste com essa versão globalista de sua personalidade.
Essa estratégia de tirar os detalhes realistas de uma história é típica de obras que querem ser propaganda, como é o caso de “Ainda estou aqui”. Quando um filme tira o contexto histórico e se torna mais abstrato e alegórico, ele se torna também mais maniqueísta. Ao focar apenas no drama da mãe, o filme retira a política e busca o consenso. É o tipo de narrativa comum à publicidade.
Se você entrar nos detalhes históricos não terá preto no branco. Terá cinza. É tudo que esse filme, uma peça de propaganda, não quer. Eu tive a oportunidade de fazer documentários e ficção com personagens torturadores (a série “9mm”, por exemplo, e o documentário “Jesus no Mundo Maravilha”). E admito que arrisquei e ouvi o ponto de vista deles. Isso, é claro, foi suficiente para ser acusado de “fascista”. É a vida. Artista não é para ser consenso, é para representar a vida. E, na minha opinião, é isso que a grande arte faz: ouve todos os lados e tenta compreender a perspectiva todos, até mesmo o “mal”. Não é o que a propaganda faz.
Walter Salles tem um histórico em tirar o poder revolucionário de mitos esquerdistas e tratá-los como algo muito genérico, lutadores da liberdade, meio bonzinhos e ongueiros. Ele já fez isso com Che Guevara em “Diários de Motocicleta”. E repetiu agora. Não sei porque, mas Salles me lembra um pouco o Haddad, essa esquerda cosmética aliada do Sistema e funcionária dos bancos. Haddad é o Salles da política.
O contexto politico
O que não foi dito no filme é dito por Salles em entrevistas, onde afirma o perigo iminente de uma volta à ditadura militar nos dias de hoje. É esse medo que justifica a manutenção do sistema atual.
Esse sistema é a Nova República, que esse ano faz 40 anos. Desde 2013, é um sistema político em crise, vivendo por aparelhos, na UTI do STF e alimentada por emendas PIX, ou seja, compra de votos.
Esse modelo de democracia está falido, pois virou uma democracia totalmente aparelhada por corporações e dominada por uma Elite da Mamata. Como sabemos, o modelo atual repassa boa parte da riqueza para o mercado financeiro, via bancos. Não tenho como esconder de vocês o óbvio: a família de Salles é uma das maiores beneficiárias do atual sistema. Salles fez um filme que critica, pela centésima vez, o regime militar, mas tem o objetivo de defender o Sistema atual. Ou seja, sua própria família e seus interesses. Ele defende a Democracia deles. Aposto que o patriarca dos Salles está orgulhoso do filho artista.
O uso político do filme gerou uma situação inusitada. O público cativo do filme, geralmente de esquerda, se compadece pelo real sofrimento de Eunice Paiva. Mas foram a blocos de carnaval se manifestar contra a Anistia de outros presos políticos, os presos de 08 de janeiro. Eu, como ativista de direitos humanos, me incomodo pela falta de empatia.
Afinal, independente dos motivos da prisão, eu sou daqueles que gostam de ouvir os dois lados de uma história. E, quem parou para ouvir, sabe que está tendo abusos. Ao tomar partido tão claramente por um único lado, Walter Salles tornou “Ainda estou aqui” uma obra estranha: um filme que denuncia abusos de autoridade do passado para justificar abusos do presente. E levou uma massa de ativistas com ele nessa completa falta de empatia pelas vítimas do presente.
As situações da ditadura militar e dos dias de hoje são completamente diferentes, é claro. Mas, como somos artistas, vamos procurar os temas universais e fazer um exercicio de adaptação para imaginar o “Ainda estou aqui 2: a versão da direita atual”.
As diferenças são óbvias. Para começar o regime militar sequer admitiu a prisão e Paiva foi considerado um desaparecido por anos. Além disso, houve tortura explicita, algo que não aconteceu nos dias de hoje. Alguém pode dizer que a ditadura é muito pior. No entanto, quando debatemos direitos humanos, nós não comparamos os sofrimentos . Apenas lutamos por justiça e temos empatia por quem sofreu abusos.
Por isso, me arrisco a dizer: a história da Viúva de Clezão (a esposa de um preso de 08 de Janeiro que morreu na prisão) pode gerar empatia no público.
E é evidente também que existem semelhanças. Os presos de 08 de Janeiro não são criminosos comuns, eles foram presos lutando pelo que acreditam, tal como os esquerdistas dos anos 70.
Portanto, se usar o mesmo recurso que Salles usou em “Ainda estou Aqui”, nós poderíamos fazer um filme que foque na versão da viúva, sem detalhar a luta política de Clezão (certa ou errada, ela não aparecerá no filme). E sem debater os motivos exatos da prisão. Se focarmos na história da viúva, como Salles fez em “Ainda estou Aqui 1”, é possível fazer um filme que construa empatia pelo drama da mulher que teve o marido preso e, em seguida, devido a maus tratos, descuido e abusos do judiciário, acabou morrendo na prisão.
Fica a ideia para o futuro. É importante começar a ter também filmes com a versão das pessoas de direita. Mesmo que você não goste, não precisa censurar. São partes da verdade que artistas livres podem trazer para catalisar os debates. E os haters de esquerda poderão, inclusive, ajudar na promoção do filme, como fizeram os haters de direita.
Como virar cineasta no Brasil
Por fim, um rápido comentário sobre sociologia da arte. Quando pensei em fazer cinema, meu pai, um técnico de fábricas do ABC, me disse que seria impossível por dois motivos:
a) Eu não sou herdeiro
b) Eu penso livremente
Vendo hoje, posso dizer que meu pai tinha razão. O cinema brasileiro prioriza quem é herdeiro. “Ainda estou aqui” é feito por uma imensa concentração de herdeiros: Salles, Paiva, Torres etc. É a família real da arte brasileira. Muito legal eles terem conquistado o Oscar. E não usaram dinheiro público. Parabéns. Mas torcemos para que o próximo prêmio seja para quem veio de baixo, mostrando que existem reais caminhos de ascensão no cinema brasileiro.
Mas existe uma outra forma de virar artista no Brasil sem ser herdeiro. Basta não pensar livremente e ser papagaio da ideologia dominante. Hoje, quem faz arte no Brasil com recurso público é, em grande maioria, quem defende ideias alinhadas ao Sistema. Não existe livre pensamento na produção artística brasileira e, por isso, ela deixou de ser polêmica e de engajar o público. Na verdade, o ambiente é tão hostil que o simples fato de você questionar a ideologia dominante já o enquadra como “fascista”, como acontece com os artistas que reunimos na “Artistas Livres”.
Walter Salles é um grande sucesso, pois concilia as duas coisas. É o maior herdeiro e o mais alinhado possível ao ideário do sistema.
Isso, é claro, não tira o talento dele como diretor. Inquestionável. O departamento de marketing do Sistema está super feliz com os resultados.
E eu, como brasileiro, fico muito feliz em ver herdeiros gastando o dinheiro, que a família tirou de nossa nação, em obras de arte. É melhor que gastar em bobagem.
Espero, sinceramente, que mais herdeiros virem artistas e botem seus filmes no Oscar. Eu torci pelo sucesso do filme o tempo todo e fiquei feliz com a vitória. Mas, tendo acontecido, posso dizer a verdade para vocês.
Está dito.