A Organização Mundial da Saúde (OMS) aprovou hoje, após anos de negociação, com votação ontem na 78ª Assembleia Mundial da Saúde, o infame Tratado das Pandemias, cujo propósito nominal é preparar melhor o mundo para o próximo patógeno global depois dos vários fiascos (da OMS inclusive) durante a pandemia de COVID-19.
O diretor-geral da entidade, Tedros Ghebreyesus, comemorou: “O mundo está mais seguro hoje graças à liderança, colaboração e comprometimento dos nossos Estados membros na adoção do histórico Acordo Pandêmico da OMS”. Para o etíope, a aprovação do tratado foi um “triunfo do multilateralismo em um mundo dividido”.
Digo que o acordo é infame por causa do conteúdo do assim chamado “rascunho zero” do tratado, que apareceu em fevereiro de 2023. O documento previa que o tratado tivesse força de lei (que fosse “legalmente vinculante”); pedia por mais “equidade”; alegava que as mulheres, que morreram menos de covid que os homens, foram “impactadas desproporcionalmente” pela doença; chamava por um aparente mercado centralizado e regulado de fabricantes e fornecedores de insumos de saúde, especialmente medicamentos e vacinas; previa confisco de 20% da produção de testes, tratamentos e vacinas das farmacêuticas para a OMS; e convocava os Estados a “combater desinformações falsas e enganosas”, ou seja, pedia mais censura.
Parece uma lista de compras daquele grupo político que passou os últimos anos obcecado com o identitarismo progressista e que apoiou todo tipo de autoritarismo durante a pandemia. Sem surpresa, os opositores do grupo, da base de apoiadores de Donald Trump nos EUA a Javier Milei na Argentina, reagiram com veemência a tudo isso. Um dos resultados foi a saída de ambos os países da OMS, em janeiro e fevereiro.
O que mudou no texto aprovado desde o rascunho tenebroso?
É importante analisar, então, o que permaneceu do rascunho zero no texto aprovado hoje. O tratado permaneceu legalmente vinculante. A ênfase em “equidade”, que é parte da retórica da esquerda, permaneceu. A alegação sobre mulheres terem sido as mais afetadas pela covid sumiu.
A possível tentativa de regular e centralizar o mercado dos insumos médicos permaneceu, o que a OMS chama de “Rede Global de Cadeia de Suprimentos e Logística” — o vocabulário de centralização foi alterado para “coordenação”.
Os 20% de confisco caíram, mas ainda são previstas doações compulsórias ou fornecimento a preço de custo para a OMS, com proporção da produção a combinar.
Já a mania 100% de esquerda de censurar “desinformação” foi atenuada no texto novo. Agora, em vez de combater, a OMS quer “prevenir” a desinformação, e a obrigação do Artigo 18 agora é de fazer “alfabetização científica e engajamento comunitário”. Ou seja, o vocabulário ficou menos punitivo contra o crimepensamento e agora o Tratado das Pandemias quer “educar” e “pesquisar barreiras à adesão” da população aos mecanismos contra patógenos pandêmicos.
A cláusula da soberania, para acalmar aos críticos que disseram que a OMS ganharia o poder de impor lockdowns e outras medidas, foi reforçada.
Há melhorias, então. Os mais cínicos diriam que são só manobras retóricas para amenizar uma sanha autoritária que ainda está ali. De certa forma, alguns dos planos mais ambiciosos viraram água de salsicha inofensiva. De uma forma ou de outra, é tarde demais.
Não são só os Estados Unidos e a Argentina que apresentaram resistência ao Tratado das Pandemias. A votação ontem recebeu 124 votos a favor e nenhum contra, passando por consenso, mas o primeiro-ministro da Eslováquia, crítico das vacinas da covid, criou um pouco de mal-estar pedindo votação nominal. Por terem reservas sobre o texto final, 11 países se abstiveram.
Governos conservadores e nacionalistas foram contra
Entre as abstenções estão Israel — que fez um trabalho científico exemplar na pandemia de COVID-19 —, Polônia, Itália, Rússia, a citada Eslováquia e o Irã.
Itália, Polônia e Israel têm governos conservadores e nacionalistas, opostos ao que muitos conservadores chamam de “globalismo”, fenômeno percebido por eles como uma diminuição de ênfase e soft power de Estados-nações a troco de maior protagonismo de organizações supranacionais como a OMS.
A resistência da Rússia é diferente, mais ligada a um ceticismo contra o Ocidente em um contexto em que o país é alvo de sanções por causa da invasão da Ucrânia e a guerra subsequente desde 2022.
O Brasil do governo Lula 3, claro, votou entusiasticamente a favor do tratado e teve papel ativo na negociação.
Também merece menção o caso da Costa Rica, que se retirou das negociações no início do ano. Suas motivações são diferentes, têm mais a ver com acesso a medicamentos e quebra de patentes. Mas o país acabou votando a favor.
Mas adianta criar regras sem dinheiro? Com a saída dos EUA, a OMS perdeu uma grande fonte de financiamento.
Agora é esperar para ver se o tratado terá alguma eficácia, para o bem ou para o mal, ou se será mais uma carta de sonhos ignorada até pelos próprios signatários.
O Tratado das Pandemias ainda precisa ser ratificado internamente por cada Estado membro, segundo os protocolos constitucionais de cada um. O texto segue para o Secretário-Geral da ONU e ainda haverá um período de assinaturas, após as ratificações, em Nova York. Logo, ainda há espaço para tretas. O resultado de hoje não garante força de lei automática para o acordo.