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O TCU e o custo da burocracia brasileira: quando menos é mais

Ao ampliar suas competências revirando concessões públicas, paralisando editais e interferindo em governos locais, o Tribunal de Contas da União (TCU) construiu um projeto de poder sobre um modelo de burocracia arcaico e ineficiente. A multiplicação de camadas de controle dificulta o funcionamento do Estado mais do que economiza recursos. O resultado é um poder público capaz de encenar elaborados rituais de formalismo burocrático, mas incapaz de fornecer serviços adequados à população.

O TCU era um pequeno órgão consultivo criado na República Velha que surfou na onda anticorrupção para conquistar novas atribuições e expandir um modelo de burocracia onipresente e onipotente. Assim, qualquer edital de licitação, contrato, convênio, transferência, concessão, empréstimo oficial e até as contas da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) passam pela lupa do TCU. O número de processos em trâmite no TCU se multiplicou em 400% desde os anos 1990 e atinge quase 40 mil processos/ano.

O problema é que o centralismo burocrático do TCU faz parte de um projeto de poder focado não em promover soluções, mas em encontrar problemas. O tribunal sustenta uma visão de Estado baseada na promoção de um controle central absoluto, que distribui obrigações, regras e penalidades a partir de uma torre de marfim indiferente à realidade das repartições públicas. A estratégia dificulta o trabalho de funcionários na ponta final do serviço público e paralisa o Estado.

A fórmula disfuncional da “burocracia total” se reproduz país afora em controladorias, ministérios públicos, advocacias públicas e outras instâncias de controle. Um exército de fiscais, auditores e promotores, sedentos por irregularidades vasculham documentos em busca de erros e omissões para vestir uma capa de herói e conduzir o vilão à praça pública. Mas a multiplicação de formalidades e controles mais faz parte do problema do que da solução.

Apagão das canetas
O próprio TCU tenta calcular o “custo Brasil” que ele mesmo produz medindo a paralisia do Estado. Contabiliza nada menos do que 52% de obras públicas paradas no Brasil. São 12 mil projetos abandonados, somando R$ 29 bilhões em investimentos, a maioria em saúde e educação. Este prejuízo é fruto do buraco negro da burocracia, que impõe calhamaços de normas e regras e ameaça quem se arrisca a atravessá-las com penalidades severas. Se algum projeto começa, o mais provável é que pare.

O efeito ficou conhecido no Brasil como “apagão das canetas”. Frente ao controle imprevisível e implacável, funcionários públicos escolhem cruzar os braços e salvar a própria pele. Do outro lado do balcão, empresários sérios evitam contratos com o governo ou embutem no preço o elevado risco administrativo. Isso reduz a concorrência, encarece produtos, ou pior, fomenta a corrupção, usada para colocar contratos em pé e reduzir riscos.
Pesquisa organizada por professoras da FGV comprovou o fenômeno do “apagão das canetas” ao descobrir que 67% dos funcionários públicos em atividades finalísticas dizem que os trabalhos de auditoria de órgãos de controle são guiados por “punitivismo e desconfiança”. Outros 61% entendiam que “os órgãos de controle geram uma carga de trabalho excessiva”. Para escapar do punitivismo e da burocracia sem fim, a saída é simples: não fazer nada.
Pesquisa feita pelo “Observatório do TCU”, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), descobriu que o TCU condenou funcionários públicos em 81% dos processos sobre de transferências voluntárias na educação. As condenações se dão em geral por descumprimento de formalidades: erros e omissões em prestações de contas, contratos e editais. A penalização generalizada tem como resultado espalhar medo e desânimo no funcionalismo.

Custo passivo
Um trabalho conduzido por economistas italianos no final dos anos 2000 concluiu que burocracias centralizadas e hierárquicas ao estilo encabeçado pelo TCU causam um prejuízo muito maior do que os desvios que tentam evitar. A pesquisa concluiu que “perdas ativas”, ou seja, as resultantes de desvios, geram custos de 11% sobre as compras do poder público. Já as “perdas passivas”, geradas por burocracia e ineficiência, respondiam por 82% do prejuízo.

As “perdas passivas” decorrem do impacto de aparatos de controle, que introduzem dificuldades no processo de compras públicas e atrapalham o andamento de contratos. A pesquisa comparou a compra de bens padronizados em diferentes esferas do poder público italiano para descobrir que, quanto mais centralizado o controle, maior o custo burocrático transferido ao produto, e maior o preço final.

“No geral, nossas descobertas são consistentes com a hipótese de que, no fim das contas, a maioria do desperdício na aquisição de bens genéricos pelo setor público italiano não se deve à corrupção, mas à ineficiência. Nossos resultados não implicam de forma alguma que a corrupção não seja uma questão importante na aquisição pública na Itália. Eles apenas indicam que o desperdício passivo parece ter um efeito ainda maior”, diz a pesquisa.
Segundo os pesquisadores, o problema decorre de estruturas de administração pública de tipo “napoleônico”. Ou seja, modelos de serviço público centralizados, exercidos de “cima para baixo”, e executados por funcionários públicos entrincheirados atrás de barricadas de regras, protocolos e regulamentos. A conclusão é a de que essas megaestruturas burocráticas geram mais custos e ineficiência do que economia.

“O principal causador do desperdício ‘passivo’ (ineficiência) parece ser o modo de governança. Os organismos públicos napoleônicos têm o pior desempenho. Autoridades locais, ao estilo dos EUA, têm resultado intermediário, e as agências autônomas são os vencedores da eficiência”, concluem os economistas italianos. Ou seja, se o plano é aumentar a eficiência do Estado, menos é mais: melhor é dar autonomia e delegar funções, não centralizar poderes.

O critério de menor preço
Outro problema é o apego desmedido a protocolos e procedimentos sem sentido, como a ideia de que as compras públicas devem acontecer sempre pelo “menor preço”. O produto mais barato, como qualquer consumidor sabe, é quase sempre o pior. O resultado é conhecido do dia-a-dia da administração pública, que convive com produtos e serviços de má qualidade, equipamentos que não funcionam, prédios novos caindo aos pedaços e ruas esburacadas logo depois de asfaltadas.

O próprio TCU identificou o problema em um relatório sobre o programa “Minha Casa Minha Vida”, no qual encontrou “vícios construtivos sistêmicos” em 90% das obras. O Tribunal constatou “falhas na pintura externa, deterioração precoce de pavimento, fissuras não estruturais, problemas em instalações hidrossanitárias, caimento inadequado dos pisos, problemas nas esquadrias”.

Em todo o mundo cresce a crítica ao modelo de menor preço como padrão nos sistemas de compras públicas. A combinação de técnica e preço, resposta mais usual ao problema, piora a situação ao criar regulamentos intermináveis para especificar o produto, e torna o processo ainda mais ineficiente. Uma compra de biscoitos pelo exército americano se tornou famosa ao vir acompanhada de um anexo de 26 páginas para definir o que é um “cookie”.

O culto ao “menor preço” torna o processo de controle caótico ao estimular auditorias baseadas em tabelas com “preços de referência”. Ao perseguir a ilusão do “preço mínimo”, o modelo espalha pânico ao presumir fraude onde há um preço arbitrado como mais alto. O erro é acredita que, em meio ao caos regulatório, os preços de compras públicas vão convergir para algum valor ideal. Cada compra pública é uma corrida de obstáculos que produz sua própria ineficiência.

O problema e a solução
A solução é menos burocracia. Estudos econômicos têm demonstrado que sem um mínimo de confiança entre as partes é impossível fazer negócios. É preciso criar estruturas institucionais que promovam transparência e participação da sociedade em processos de compras e na gestão de contratos públicos. O que especialistas têm notado é que descentralizar recursos e delegar responsabilidades é a melhor forma de reduzir o desperdício.
Seria melhor abrir debates para tentar trazer o usuário para mais perto da gestão do sistema público e democratizar os instrumentos de controle para a população. Mas incorporar o personagem do campeão da moralidade traz dividendos políticos. Com isso, o TCU amarra o país a um modelo de gestão pública ineficiente e ultrapassado.

Politização do TCU
O TCU ampliou sua competência nos últimos anos avocando o controle de governos locais, invadindo o espaço de agências reguladoras, controladorias, advocacias públicas, ditando novas leis ao legislativo e espalhando influência no executivo. Virou revisor geral de acordos de leniência e até mediador de conflitos com a União. A inflação descontrolada de competências carrega um caráter evidentemente político.

Ao escolher para si mesmo o papel de bastião da moralidade e líder supremo da burocracia brasileira, o TCU ganha visibilidade na opinião pública e poder de mando na política nacional. O fato de que quase todos os ministros do TCU têm origem em quadros políticos não ajuda. A maior parte dos ministros do TCU são indicados de forma livre pelo Congresso Nacional.

Na prática, o cargo é negociado entre parlamentares para retribuir quadros de destaque ou dar desfecho digno à carreira de veteranos mais qualificados. As vinculações políticas dos quadros do TCU são um evidente empecilho à autonomia e independência do órgão. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 50/2019, assinada por 30 senadores, propõe que os ministros do TCU passem a ser escolhidos apenas entre quadros técnicos do tribunal.
“O que se observa, em suma, é a possibilidade de indicações políticas para ocuparem um órgão essencialmente técnico. Resta evidente que os indicados a ocupar posições de tamanha relevância, em um órgão cuja imparcialidade e tecnicidade devem balizar a atuação, caso tenham vinculação política com quem quer que os tenha indicado, colocará em dúvida a lisura da própria instituição”, justifica o projeto.

O TCU avocou a si o posto de representante máximo da burocracia brasileira a partir de em uma hipótese errada de como funciona o Estado. Uma máquina focada em gerir controles e distribuir penalidades pode aparentar economia e moralidade, mas na prática produz desperdício e ineficiência. Ao buscar visibilidade e projeção política, o tribunal foca no problema, e não na solução. Menos preocupação com o teatro burocrático e mais foco prestação do serviço público podem ajudar.

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Claudio Dantas

Claudio Dantas

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