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Notas da Comunidade, alvo da esquerda autoritária, são fruto da esquerda democrática de Taiwan

Um sistema de democracia digital, impulsionado por uma hacker trans, em um país insular ameaçado de invasão por uma ditadura continental. Esta é a origem das Notas da Comunidade, o sistema de “checagem de fatos” adotado primeiro por Elon Musk, no X, e agora por Mark Zuckerberg, nas redes sociais da Meta.

A nação insular é Taiwan, que tem sua soberania constantemente ameaçada pela ditadura continental da China, um império autocrático governado por um Partido Comunista cujas ambições expansionistas estão em reaver territórios historicamente sob o controle da etnia han. A ilha é o principal alvo do ditador Xi Jinping.

O nome do sistema é “vTaiwan”, lançado em 2014. É um software que permite um processo de consulta pública descentralizado e aberto “que combina interações online e offline”, explica o site oficial, “aproximando os cidadãos de Taiwan e o governo para deliberar sobre questões nacionais”.

Uma das aplicações do vTaiwan é o “Pol.is”, uma plataforma digital para coletar opiniões dos cidadãos e facilitar “conversas em grande escala e a construção de consenso” — é aqui que as semelhanças com as Notas da Comunidade ficam mais claras.

O que se entende por formação de consenso é que não é uma maioria simples que decide quais soluções serão implementadas. Para que uma solução seja escolhida, grupos antagônicos — assim definidos pelos votos anteriores dos indivíduos dentro do sistema — precisam concordar. Por isso, o vTaiwan diz que sua missão é “repensar a democracia”, e fortalecê-la.

Mais de 28 amplos debates públicos foram feitos pelo sistema de democracia digital, em 80% dos casos levando a ações do governo da ilha. Foi pela formação de consenso do vTaiwan que o governo regulou, por exemplo, a operação do Uber no país. Também foram geradas propostas regulatórias implementadas em problemas como a venda de bebidas alcoólicas online e a publicação de imagens íntimas por vingança — há uma preferência por temas do mundo digital. O sistema continua em evolução, com a adoção das novas ferramentas de inteligência artificial a partir de 2023.

Quando Elon Musk comprou o Twitter, em 2022, encontrou lá o projeto Bird Watch (“observação de pássaros”). Era o embrião do que ele preferiu chamar de Notas da Comunidade. Desenvolvedores de software do vTaiwan foram convidados para contribuir.

Como funcionam as Notas da Comunidade

Qualquer cidadão pode propor uma questão a ser considerada, tanto no vTaiwan quanto nas Notas da Comunidade. Para votar e propor notas, é preciso ter uma conta no X com número de celular confirmado e sem violações recentes às regras da rede social.

Ao entrar, o usuário ganha um pseudônimo automático, para evitar perseguição fora do sistema. Inicialmente, não se pode escrever notas, somente votar. O direito de escrever é adquirido quando o usuário acumula uma boa nota como conciliador: ganha pontos positivos se ajudou alguma nota a ganhar o status de “útil” — quando o consenso é atingido e ela é exibida publicamente como tarja abaixo da postagem corrigida — e pontos negativos se foi contra a corrente do consenso, por exemplo dizendo que foi “não útil” alguma nota que atingiu consenso como “útil” (ou vice-versa). A maioria das notas propostas não atinge consenso e fica sem classificação e, portanto, sem pontos positivos ou negativos para quem votou.

Os consensos podem ser efêmeros; por isso, algumas notas caem horas ou minutos depois de aparecerem publicamente nas postagens. Os grupos antagônicos que precisam chegar a um consenso para classificar alguma nota como “útil” ou “não útil” são definidos automaticamente pelo algoritmo com base em votos dos usuários em notas anteriores. Logo, o algoritmo não sabe se o usuário é de “esquerda” ou “direita”, mas diferentes grupos definidos automaticamente podem ter semelhanças com essas classificações políticas.

O algoritmo e os dados das Notas da Comunidade são completamente abertos e transparentes. Um entendimento completo, contudo, requer conhecimento avançado de matemática e programação. O programador Vitalik Buterin, um russo radicado no Canadá que criou a criptomoeda Ethereum e possui esses conhecimentos, disse estar impressionado com a complexidade do programa. Ele crê que podem existir formas de abuso, mas afirmou que “as notas, quando aparecem, são informativas e valiosas”.

Um artigo publicado em abril de 2024 na JAMA, principal revista científica da Associação Médica Americana, elogiou as Notas da Comunidade. Os cientistas apontaram que as notas corrigindo informações sobre a Covid eram “inteiramente precisas” 97% das vezes.

Como escreveu Felipe Pontes aqui neste portal, outro estudo apontou que as notas reduzem em 62% a propagação de postagens enganosas.

O sistema veio da esquerda democrática

O vTaiwan foi criado em uma maratona de programação (hackathon) promovida por participantes do Movimento Girassol. Foi um movimento de protesto da centro-esquerda taiwanesa, em 2014, contra a implementação de um acordo de comércio entre o governo do partido conservador Kuomintang e a ditadura continental.

Audrey Tang, programadora que foi ministra de Assuntos Digitais de Taiwan entre agosto de 2022 e maio de 2024, auxiliou na integração do sistema ao governo com o Espaço de Inovação Digital Pública (PDIS na sigla em inglês) e a ferramenta “Join” (“Participe”). Ela é a hacker trans a quem fiz referência no início. Os criadores da plataforma Pol.is dão crédito a Tang pela ideia de torná-la disponível em código aberto (sem proteção de copyright).

Tang, que ajudou o Movimento Girassol aplicando suas capacidades em transmitir os protestos ao vivo pela Internet, se diz “pós-gênero” e aceita qualquer pronome, masculino, neutro ou feminino. Politicamente, se diz “anarquista conservadora”. Foi criada em uma família em que as crenças religiosas são um sincretismo cristão e taoísta. Ela foi um menino superdotado, dominando matemática avançada aos seis anos e a programação de computadores aos oito. “Quero ser um ancestral bom o suficiente para as futuras gerações”, diz em uma plataforma que vende suas palestras.

Agora, uma década depois da iniciativa da esquerda democrática taiwanesa, a esquerda ocidental identitária e autoritária, que quer mais censura, ataca os sistemas de democracia digital, em pânico com a vitória de Donald Trump para seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos.

A esquerda autoritária da checagem não gostou do sistema de democracia digital

A inovação democrática e de baixo custo causou desconforto em especialistas em desinformação e agências de checagem de fatos — que por muitos anos receberam muito dinheiro da Meta.

A advogada Iná Jost, pesquisadora do InternetLab, e a jornalista Tai Nalon, diretora e cofundadora da agência Aos Fatos, demonstraram ceticismo contra as Notas da Comunidade numa reportagem publicada pelo jornal O Globo em novembro de 2023.

Jost cobrou uma “certificação” para os participantes das Notas da Comunidade e alegou que a Wikipédia consegue exigir de seus editores fontes mais confiáveis. A advogada também cometeu um engano ao afirmar que seria preciso pagar ao X para ter acesso aos dados das notas — na verdade, qualquer pessoa pode baixar o arquivo completo.

O grupo da pesquisadora, o InternetLab, conta com apenas uma especialista em computação dentre 26 integrantes, a maior parte formada em direito. Apesar de se autodefinir como um “centro independente de pesquisa interdisciplinar”, recebe financiamento internacional da Open Society, da família Soros, e da Fundação Ford.

Mesmo com o programa em código aberto e acesso irrestrito aos dados, Tai Nalon afirmou que o processo de admissão dos contribuidores das Notas da Comunidade “não é claro” e que esse anonimato “acaba gerando vulnerabilidades”.

As Notas às vezes podem ser abusadas, como observei e reclamei, na qualidade de contribuidor, quando o consenso foi atingido para exibir várias tarjas em postagens de sites da agência Mynd8 há um ano. A razão para isso era que diferentes grupos estavam revoltados com notícias falsas desses sites que levaram ao suicídio de uma jovem. As tarjas eram aplicadas nas postagens de contas como a do site “Choquei” independentemente do conteúdo das postagens.

Esse problema, é claro, ainda é muito menor que o viés político das agências de checagem do qual Mark Zuckerberg reclamou ao anunciar sua guinada pró-liberdade na Meta. Prefiro a má aplicação dos consensos em postagens não relacionadas ao conteúdo das tarjas que a Agência Lupa, por exemplo, emprestando seu espaço para ativistas identitários publicarem desinformação a respeito da expressão “criado-mudo” ser racista. Preocupar-se com a saúde mental de jovens é mais nobre que inventar racismo onde não tem, especialmente quando isso é feito com um estímulo a uma agenda de censura.

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Eli Vieira

Eli Vieira

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