A recuperação judicial do Grupo João Santos, um dos mais tradicionais conglomerados industriais do Brasil, transformou-se em um palco emblemático das fragilidades do sistema jurídico-empresarial brasileiro. À semelhança do que ocorreu nos casos das Americanas, Oi e outros gigantes, a condução do processo desperta suspeitas de abuso de poder, nomeações obscuras, desvio de recursos e favorecimentos incompatíveis com a natureza pública da Justiça.
Uma recuperação à margem dos herdeiros
Começou com uma decisão que muitos classificam como uma “manobra judicial”: a nomeação, sem consulta ou anuência dos herdeiros legais, de um inventariante dativo totalmente alheio à família do patriarca João Pereira dos Santos, falecido fundador do grupo. Os seis filhos diretos do empresário foram simplesmente alijados do processo de inventário e, por consequência, da condução da recuperação judicial de um império que ajudaram a construir.
Nomeado inventariante, Augusto Quidute assumiu poderes amplos e vem tomando decisões cruciais com base em sua prerrogativa de representar 91% das cotas dos espólios. Segundo relatos, há especulações nos bastidores de que o inventariante dativo mantém relações pessoais com o desembargador relator do caso, que posteriormente declarou-se suspeito — mas somente após decisões que mudaram o rumo do processo.
Uma conta milionária sem explicação
Em 2023, enquanto o Grupo João Santos declarava dificuldades financeiras e pedia moratória a seus credores, R$ 21 milhões foram pagos a escritórios de advocacia e prestadores de serviços “aleatórios”, sem relação com o corpo jurídico original da empresa. A denúncia, protocolada em juízo e registrada no processo da 15ª Vara Cível de Recife, fala em ‘fraude a credores e lavagem de capitais‘, com desvio sistemático de valores por meio de contratos opacos.
O caso levanta suspeitas ainda mais graves: os pagamentos teriam sido feitos com o aval da nova administração e podem ter beneficiado “membros do Poder Judiciário envolvidos com os interesses do Grupo João Santos e do Inventário”, segundo o documento protocolado por cinco advogados atuantes no caso.
Alienações de bens a preço de banana
Outro ponto crítico da recuperação é a discrepância nos valores de avaliação dos ativos do grupo. A Justiça reconheceu que os imóveis dados em garantia do financiamento DIP com a ARC Capital foram subavaliados em até 90%. Mesmo assim, essas avaliações seguem como referência para alienação de ativos bilionários — um risco real de esvaziamento patrimonial que pode prejudicar credores, trabalhadores e os próprios herdeiros.
A prática é semelhante à denunciada em outras recuperações judiciais pelo Brasil, como mostrou reportagem do iG: “Em muitos casos, escritórios e fundos lucram com a derrocada das empresas, comprando ativos subvalorizados e atuando na sombra do Judiciário”.
Reportagens da Gazeta do Povo e do O Povo já haviam alertado para a existência de um sistema paralelo dentro da Justiça falimentar, onde administradores judiciais e assessores jurídicos atuam com autonomia quase total e sem fiscalização efetiva, muitas vezes acumulando fortunas em honorários e decisões questionáveis.
A nomeação de um inventariante dativo sem relação com a família, os pagamentos milionários a escritórios não identificados, a alienação de bens a valores abaixo do mercado e a exclusão deliberada dos herdeiros legítimos formam um mosaico de abuso institucional e fragilidade jurídica. Um sistema que, ao invés de resguardar o interesse público e dos credores, parece alimentar uma engrenagem privada de poder e enriquecimento.
O que está em jogo
A recuperação judicial do Grupo João Santos tornou-se símbolo de um problema maior: quem vigia os processos de recuperação no Brasil? E, mais do que isso, quem se beneficia das falências e reestruturações — os credores e trabalhadores ou uma elite jurídica que atua nas sombras? O destino do caso está nas mãos do ministro Moura Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça, relator de um recurso especial apresentado pelos advogados de Fernando João Pereira dos Santos, herdeiro e inventariante original do espólio.