Por Eli Vieira
O jornal The Wall Street Journal publicou hoje uma reportagem baseada na primeira entrevista pública de Jason Bannan, um alto oficial do FBI e doutor em microbiologia que trabalha com a agência de inteligência desde 2001. Bannan trabalhou em investigar as origens da Covid-19.
Em maio de 2021, o presidente americano Joe Biden pediu às várias agências de inteligência do país que avaliassem se o vírus da Covid-19 tinha origem natural ou vazara de um laboratório. Ele deu três meses para apresentarem conclusões. Quatro agências, além do Conselho Nacional de Inteligência, concluíram em agosto daquele ano com “baixa confiança” que a origem era natural. O FBI, com “confiança moderada”, concluiu pela origem laboratorial — ou seja, tinha mais fé na própria avaliação que as outras agências.
No dia 24 daquele mês, os figurões da inteligência americana se encontraram com o presidente Joe Biden para responder à sua demanda por informações. Mas o FBI não foi convidado.
“Como a única agência que avaliou que uma origem laboratorial era mais provável, e a agência que expressou o maior nível de confiança em sua própria análise da fonte da pandemia, antecipávamos que o FBI seria convidado para comparecer à reunião. Fico surpreso que a Casa Branca não tenha convidado”, disse Bannan ao WSJ. Um porta-voz da Diretoria Nacional de Inteligência dos EUA afirmou ao jornal que não houve nada fora do protocolo na falta de convite.
Indícios da supressão da hipótese da origem laboratorial
O jornal não se deixou convencer pela palavra do porta-voz e desenterrou informações adicionais: três cientistas de uma unidade médica do Pentágono haviam feito um estudo científico que indicava manipulação laboratorial do material genético do novo coronavírus (SARS-CoV-2). Os cientistas — John Hardham, Robert Cutlip e Jean-Paul Chretien — propuseram que uma estrutura da proteína de espícula do vírus, que atua como uma chave que abre a “fechadura” das nossas células, foi posta ali pelo uso de uma técnica descrita pelos virologistas chineses em um artigo técnico de 2008. O estudo foi ignorado no relatório entregue a Biden. A questão da supressão do estudo foi investigada por uma ouvidoria interna, mas ela se recusou a informar se chegou a alguma conclusão.
Nos primeiros meses da pandemia, houve um esforço de parte da comunidade científica para desacreditar a hipótese da origem laboratorial. Esse esforço foi apresentado na forma de publicações nas revistas Lancet, em fevereiro de 2020, e Nature Medicine, em março (um editor brasileiro participou do processo decisório na última).
Ambas as publicações foram manchadas por conflito de interesses. A carta na Lancet foi articulada pelo britânico Peter Daszak, presidente da ONG EcoHealth Alliance, que intermediava verbas entre os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (que atuam como nossos CNPq e Capes) e o Instituto de Virologia de Wuhan, na China, que fazia pesquisa de manipulação de material genético na família dos coronavírus em laboratórios com nível de segurança inadequado para isso.
Já o artigo na Nature Medicine foi insincero — os próprios autores continuaram dizendo em particular no aplicativo Slack que não tinham muita segurança de que o vírus tinha origem completamente natural. Além disso, o artigo foi articulado por Anthony Fauci, diretor veterano de um dos institutos de saúde que havia expressado viés contra a hipótese da origem laboratorial em um podcast com o conservador Newt Gingrich e, ao lado de Trump em uma coletiva, mentiu que não conhecia os autores do artigo.
Jason Bannan havia trabalhado no maior ataque biológico da história dos EUA, as cartas contendo antraz enviadas a parlamentares e outras autoridades após o ataque às torres gêmeas. Sua primeira dificuldade ao investigar a Covid era que a China havia mentido, suprimido informações e punido delatores — como o oftalmologista Li Wenliang — desde o começo da pandemia em 2019.
O relato dos quatro cientistas agentes de inteligência é que a chefia da unidade de medicina do Pentágono disse a eles em julho de 2021 que parassem de compartilhar suas descobertas com o FBI porque eram “fora de ordem”. A cúpula da inteligência também rejeitou suas propostas de edição para o relatório apresentado a Biden.
O trio de autores do estudo escreveu um artigo próprio respondendo ao publicado na Nature Medicine. A resposta foi proibida de circular fora da unidade de medicina e só emergiu três anos depois por vazamento para uma “CPI da Covid” dos republicanos.
E então, veio de laboratório ou não?
A colaboração de elites científicas e estatais para suprimir a hipótese da origem laboratorial da Covid é repugnante. Mas devemos ter cuidado para não deixar que essa repugnância nos influencie a dar certeza de que ela é verdadeira.
Também devemos evitar a tendência do pensamento paranoico de concluir que é verdadeira a partir da análise de conflito de interesses. Não que não seja importante saber deles: além do óbvio conflito de interesses de Peter Daszak, há um elefante na sala dos interesses da virologia.
Os virologistas, que ganham um bônus de verba por lidar com questões de segurança nacional e saúde pública, têm incentivo para suprimir qualquer sinal de negligência profissional em sua própria comunidade. Se os eleitores e as autoridades que tomam decisões sobre verbas ficam com a impressão de que os virologistas correm riscos desnecessários, por exemplo selecionando vírus para ficarem cada vez mais capazes de infectar camundongos transgênicos com pulmões similares aos humanos (e eles realmente fazem isso), há risco de corte de verbas. E não importa o quanto as pessoas afirmem que se orientam por princípios ou curiosidade científica, em conjunto elas simplesmente respondem a incentivos, e neste caso há incentivo para abafar hipóteses que ameacem o jabá.
É preciso também evitar um deslumbramento com a comunidade de inteligência. Enquanto os segredos fazem bons filmes e séries, eles também levam a uma falta de compartilhamento de dados. Menos compartilhamento de dados leva a menos cabeças pensando sobre o mesmo problema e convergindo independentemente para uma conclusão. Não espero que a melhor ciência seja feita por agentes secretos por esse motivo.
Dito tudo isso, há indícios apontado para a origem laboratorial: a presença curiosa, mas não impossível naturalmente, do “sítio de clivagem da furina” (que torna o vírus mais eficaz em contagiar humanos e não está presente em seus parentes mais próximos na natureza), a falta de cavernas e morcegos infectados com a família do SARS-CoV-2 nos arredores de Wuhan, a falta de confirmação de um animal infectado no mercado de animais silvestres de Huanan etc.
Para todos esses pontos e alguns outros, há respostas dos defensores da hipótese zoonótica (da origem natural). O psiquiatra americano e decano da blogosfera científica-cética, Scott Alexander (pseudônimo), promoveu um longo debate a respeito da origem da Covid-19. Ele investiu 15 horas em ouvir os dois lados.
Conclusão de Alexander: o defensor da hipótese zoonótica venceu, e foi “uma vitória decisiva”. “Havia dois juízes, que deram veredictos separados (ou tinham permissão de declarar um empate). Ambos os juízes decidiram a favor” do defensor dessa hipótese. Houve um “mercado de predições” em torno do debate, que ocorreu em março. As apostas antes do debate favoreciam o vazamento laboratorial em 70%. Depois dos debates em vídeo, houve uma virada.
Independentemente, o grupo de Philip Tetlock, pesquisador conhecido por um bestseller a respeito de previsões científicas, deu 75% de probabilidade favorável para a hipótese zoonótica.
Antes do debate, disse Alexander, ele dava 50% para cada hipótese. “Agora dou 90% a favor da zoonose”, concluiu.
Os debatedores usaram técnicas como a estatística bayesiana, mas não se assuste com essas tecnicalidades. Primeiro, há a importante diferença entre vencer na capacidade de persuasão e realmente estar certo. No fim, eles têm informações em última análise limitadas e podem estar errados. Mas não devemos bater o martelo a favor nem da zoonose, nem do vazamento laboratorial como a explicação última.
O que merece umas marteladas bem dadas é a conspiração real de cientistas e burocratas para tentar matar prematuramente uma hipótese inconveniente para seus bolsos e carreiras.