Há momentos em que a verdadeira natureza de uma narrativa se revela não pelo que ela diz, mas pelo que ela omite. A recente coluna de Eliane Cantanhêde, no Estadão, e sua atuação na GloboNews após as declarações do secretário de Estado dos EUA sobre a possibilidade de aplicação da Lei Magnitsky ao ministro Alexandre de Moraes, fornecem um exemplo didático de indignação seletiva — essa deformação moral que protege o poder e despreza o cidadão comum.
Naquele espaço de opinião, Eliane evocou a Pátria, criticou a suposta submissão de brasileiros ao “imperialismo” norte-americano e acusou a existência de uma campanha coordenada para atacar as instituições nacionais. A retórica foi inflamada, o tom patriótico, a moldura alarmista. Mas não foi sempre assim.
Quando o empresário Clezão morreu após perseguição judicial, onde estava essa comoção com a dignidade da pessoa humana? Quando a revista Crusoé teve censurada a capa com a frase “O amigo do amigo de meu pai”, símbolo de denúncia contra o então presidente do Supremo, Eliane não gritou por liberdade de imprensa. Quando Rodrigo Constantino teve suas redes bloqueadas, a mesma indignação que hoje ela invoca em nome da Constituição se ausentou. E quando a Justiça impôs censura à Jovem Pan, ao Brasil Paralelo e, posteriormente, ao X, com bloqueio de contas e confisco de recursos da Starlink, houve silêncio — ou, pior, aprovação velada.
Esses episódios não são exceções. Eles compõem um padrão: o da normalização da repressão quando ela atinge aqueles que ousam desafiar o discurso dominante. O padrão da benevolência com o arbítrio, desde que o arbítrio tenha um verniz progressista ou institucional. O padrão de quem se alarma com sanções quando atingem o poder, mas desdenha das sanções que recaem sobre o indivíduo.
O debate travado na GloboNews entre Eliane e Guga Chacra explicitou essa distorção. Enquanto Guga defendia a liberdade de expressão como direito que antecede ideologias, Eliane defendia um modelo de democracia em que críticas ao Judiciário são vistas como ameaças, e não como prerrogativas legítimas de qualquer cidadão. A retórica da “democracia em risco” foi usada como escudo para justificar o silenciamento. Na sua lógica, o cidadão comum, especialmente aquele que discorda, deve ser regulado, restringido, tutelado — por seu próprio bem, naturalmente.
Uma concepção de democracia como essa — em que as instituições se tornam castas sacerdotais, imunes ao escrutínio — revela a persistência de uma tradição em que o Estado se protege, não servindo, mas dominando. Trata-se de uma legalidade sem legitimidade, que confunde a ordem com o silêncio e a estabilidade com o servilismo. O arbítrio, neste cenário, já não se esconde: ele se apresenta togado, técnico, bem falante, apoiado por jornalistas que, ao invés de interrogar o poder, o revestem de solenidade.
Essa lógica é herdeira do que Raymundo Faoro diagnosticou como o estamento burocrático: “Sobre as classes que se armam e se digladiam, debaixo do jogo político, vela uma camada político-social, o conhecido e tenaz estamento, burocrático nas suas expansões e nos seus longos dedos” (Os Donos do Poder, p. 784, 5.ª ed.). O estamento disfarça sua dominação sob o pretexto do interesse público, mas age como guardião dos seus próprios privilégios, manipulando a lei como instrumento de blindagem. Assim, transforma a Constituição não em limite ao poder, mas em ornamento para o autoritarismo.
O que se revela, por trás desse discurso que ergue as instituições acima do escrutínio, é uma inversão silenciosa da lógica republicana: já não se trata de proteger o cidadão contra o poder, mas o poder contra o cidadão. Uma legalidade sem legitimidade se impõe, em que normas formais servem de álibi para atos que corroem as liberdades que juram preservar. Quando juízes tornam-se autoridades irrespondíveis, blindadas por retórica sagrada, o princípio da separação de poderes se esvazia, e a república degenera em casta. O direito de criticar, de questionar, de expressar dissenso — fundamento primeiro de qualquer ordem livre — passa a ser tratado como ameaça, quando é, na verdade, seu antídoto mais eficaz contra o arbítrio. Essa não é a defesa da democracia: é sua caricatura togada.
Mas o verdadeiro teste do compromisso com a liberdade não está na defesa de ideias com as quais concordamos. Está na disposição de proteger a liberdade de quem pensa diferente. Está na coragem de reconhecer que o poder, qualquer poder, precisa ser contido — mesmo (e sobretudo) quando diz agir em nome do bem.
A Pátria que Eliane defende parece ser a das instituições blindadas, da autoridade inquestionável, da imprensa alinhada. Mas há outra Pátria, silenciosa, perplexa, estarrecida diante de uma mídia subserviente e de um sistema que persegue com um critério e protege com outro. Uma Pátria que não se ajoelha diante do arbítrio, ainda que este venha togado ou aplaudido.
Essa Pátria, a verdadeira, não ignora o risco de ataques às instituições. Mas sabe que não há risco maior do que o de transformar a defesa da democracia em pretexto para sufocar o cidadão.
Talvez Eliane Cantanhêde seja, sem o saber, uma discípula tardia de Simão Bacamarte. Instalada não em Itaguaí, mas nos estúdios refrigerados e colunas de jornal, prescreve o confinamento dos dissidentes e a exaltação dos togados. Para ela, a normalidade democrática só se alcança quando os insanos — isto é, os críticos — são silenciados em nome da razão superior do Estado. E assim vai enchendo o manicômio da opinião pública com os que ousam discordar, enquanto saúda os médicos do regime como faróis da lucidez. Como Bacamarte, ela crê servir à ciência; como ele, talvez um dia desperte para o fato de que diagnosticou a loucura por espelho.
*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum