Por Michael Shellenberger*
A energia renovável não teve nada a ver com os catastróficos apagões em Espanha, diz o primeiro‑ministro, insistindo que o verdadeiro culpado foi uma rara falha técnica sem relação com a transição verde do país. Pedro Sánchez foi além e reiterou a oposição do seu governo à energia nuclear, que classificou como “longe de ser uma solução”.
Contudo, como salientei antes, a causa subjacente do apagão foi a falta de “inércia” — o amortecedor físico fornecido por centrais tradicionais que usam maquinaria pesada em rotação para estabilizar a rede durante flutuações súbitas.
Os nossos sistemas elétricos baseiam‑se em centrais que fazem girar eixos metálicos maciços a milhares de rotações por minuto, gerando eletricidade e, ao mesmo tempo, impulso. Essa massa rotacional atua como um amortecedor, resistindo automaticamente a variações bruscas entre oferta e demanda.
Quando ocorre uma falha ou queda repentina no sistema, essa inércia compra segundos preciosos para que os sistemas de controle respondam e os operadores isolem o problema. Em contraste, painéis solares e a maioria das turbinas eólicas modernas dependem de conversores eletrônicos, que não têm massa física e não conseguem amortecer esses choques.
É verdade que os gestores da rede elétrica ainda não identificaram uma causa específica que tenha desencadeado o apagão, e tanto a Red Eléctrica de España como a portuguesa REN advertiram que uma análise completa da causa‑raiz poderá levar semanas.
Relatórios preliminares descrevem uma “oscilação muito forte” na rede e sugerem que o evento começou com uma perturbação inesperada, possivelmente ligada a uma queda súbita na geração ou a uma falha de equipamento.
Mas isso não muda o fato de a rede espanhola carecer de inércia, e de que, se houvesse mais inércia no sistema, o apagão poderia ter sido evitado ou, pelo menos, contido. Inércia não é um ornamento teórico; é uma propriedade física fornecida por geradores pesados e giratórios, como os de centrais a gás, carvão ou nucleares, que naturalmente resistem a mudanças súbitas de frequência.
No dia do apagão, quase 80 % da eletricidade da Espanha vinha de fontes solares e eólicas baseadas em conversores, que não oferecem força estabilizadora. Com tão poucas centrais convencionais ligadas, a rede praticamente não tinha amortecedor para absorver nem um choque menor.
Quando a perturbação ocorreu, a frequência despencou e o sistema desmoronou em segundos. Ao contrário das redes antigas, construídas em torno de massas rotativas, a moderna e ultraleve rede espanhola simplesmente não tinha como resistir ao desequilíbrio súbito.
E a operadora da rede elétrica espanhola admitiu, numa teleconferência, que foi uma “perda maciça” de geração renovável que desencadeou o apagão e disse ser “muito provável” que a perturbação inicial tenha vindo da energia solar.
Numa coletiva com jornalistas, a Red Eléctrica de España descreveu uma sequência de falhas iniciada exatamente às 12h33 de segunda-feira (28/04), quando a rede sofreu o que classificou como “evento semelhante a perda de geração” no sudoeste do país — muito provavelmente solar.
Embora a rede tenha se autocorrigido inicialmente, foi atingida 1,5 segundo depois por mais um choque, também “semelhante a outra perda de geração”, que desestabilizou ainda mais o sistema. Segundos depois, a rede ibérica desligou‑se do resto da Europa e, em instantes, uma queda “maciça” na produção renovável reduziu a geração espanhola a zero.
Na verdade, ninguém deveria ficar surpreendido com o que aconteceu em Espanha, já que muitas pessoas, inclusive eu, vêm alertando para isso há anos, e a Agência Internacional de Energia (IEA) advertiu precisamente sobre este risco há poucos dias, numa conferência e num relatório confidencial que não divulgou.
Segundo a Bloomberg, o documento inédito da IEA afirmava claramente que “desafios sistémicos surgirão ao equilibrar redes cada vez mais dominadas por renováveis durante períodos prolongados de baixa geração”, reconhecendo que a natureza dependente do clima da solar e da eólica não pode sustentar a procura contínua sem sérias consequências.
O relatório também alertava que as vulnerabilidades atuais decorrem da “aposentação prematura da geração despachável sem substituições adequadas”, destacando países como a Alemanha, que desligaram as suas frotas nucleares sem assegurar a estabilidade da rede.
E, embora políticos em Madrid há muito ignorem esses riscos estruturais, a própria operadora espanhola admitiu num relatório de fevereiro — dois meses antes do apagão — que o sistema estava perigosamente exposto: a elevada parcela de renováveis, dizia, não tinha capacidade técnica para resistir a perturbações, tornando mais prováveis apagões severos.
Especificamente, mencionava o potencial de “desconexões de geração” em períodos de alta produção renovável, o que poderia comprometer a estabilidade da rede.
Esses desafios surgem num momento em que a inteligência artificial deverá provocar um enorme aumento no uso de eletricidade, exercendo ainda mais pressão sobre redes já frágeis. A IEA diz que, até 2030, centros de dados podem consumir mais eletricidade por ano do que todo o Japão, sendo a IA o principal motor desse crescimento.
Nos EUA, a IA é o maior impulsionador da crescente procura elétrica pelos data centers, devendo responder por quase metade de toda a nova procura nos próximos cinco anos, superando mesmo indústrias pesadas como aço e cimento.
Na Europa, especialistas estimam que, em 2030, os data centers usarão quase o dobro da eletricidade que consomem hoje, chegando a 5 % da procura total — aproximadamente o consumo atual de toda a Bélgica — muito por causa da IA. E, globalmente, a eletricidade necessária apenas para manter sistemas de IA em funcionamento pode duplicar nos próximos cinco anos.
Os custos de alterar a rede elétrica para depender de renováveis sujeitas ao clima seriam enormes, e a Alemanha é um aviso. Depois de fechar as suas últimas centrais nucleares e perder o acesso ao gás natural russo barato, os preços de energia alemães dispararam e a economia entrou numa recessão prolongada.
O país já gastou centenas de milhares de milhões de euros na sua transição energética, mas continua a queimar carvão nas horas de ponta e luta para manter a competitividade industrial. A produção manufatureira caiu, grandes empresas químicas e siderúrgicas reduziram operações ou se mudaram, e os elevados custos de eletricidade tornaram o investimento pouco atrativo.
Apesar das promessas de energia limpa e acessível, a Alemanha paga a eletricidade mais cara da Europa. Entretanto, o encerramento de fontes despacháveis como nuclear e gás tornou a rede mais vulnerável a flutuações, obrigando‑a a importar energia de emergência de países vizinhos quando o sol não brilha ou o vento não sopra.
E os consumidores alemães terão de desembolsar mais 490 milhões de euros para expandir a rede elétrica até 2045 e acomodar todas as renováveis dependentes do clima.
Assim, Sánchez e outros líderes europeus estão a ser desonestos acerca das causas dos apagões e do papel essencial da energia nuclear. Ao insistir que a interrupção nada teve a ver com as renováveis e reforçar o encerramento de centrais nucleares despacháveis e de baixo carbono, ignoram as realidades físicas da estabilidade da rede e os alertas dos próprios especialistas.
A energia nuclear fornece a geração estável e rica em inércia que mantém a rede equilibrada quando as renováveis caem. No entanto, Sánchez usou o apagão para, novamente, atacar a energia nuclear, mesmo quando a produção solar colapsou e as centrais nucleares remanescentes ajudaram a sustentar o sistema.
Na verdade, Sánchez e os seus aliados estão a tentar fechar as centrais nucleares espanholas, embora esses reatores sejam a fonte mais fiável e sem emissões de eletricidade de base do país.
Segundo o plano energético atual do governo, todas as centrais nucleares remanescentes serão desativadas até 2035 — decisão mais ideológica do que técnica — justamente quando a rede se torna mais frágil, a procura cresce com a eletrificação e a IA, e os preços do gás continuam voláteis.
Deste modo, Sánchez espalha desinformação — e talvez até mal‑informação — sobre as causas do apagão e o papel da energia nuclear, ao mesmo tempo que impulsiona uma censura governamental, inclusive a nível europeu, de opiniões dissidentes nas redes sociais.
A administração Sánchez e aliados em Bruxelas apoiam legislação que pressiona plataformas a remover ou suprimir conteúdos que questionem a transição verde, o fecho de centrais nucleares ou narrativas energéticas oficiais.
Mais alarmante ainda é que Sánchez exige que todos os europeus adotem um sistema de “identidade digital” — que especialistas em privacidade temem poder ser usado para rastrear, monitorizar e até punir pessoas pelo que dizem online.
Como reportou Cecílie Jílková em fevereiro para o Public, Sánchez usou o seu discurso no Fórum Económico Mundial para pedir “o fim do anonimato nas redes sociais” e insistiu que “todas essas plataformas” deveriam ser obrigadas a “ligar cada conta de utilizador a uma Carteira de Identidade Digital Europeia”.
Esta app combinaria contas bancárias, registos de saúde, declarações fiscais e documentos pessoais num único sistema que governos — ou empresas que o gerissem — poderiam usar para vigiar comportamentos e impor restrições de discurso.
Por que Sánchez faz isto? O dinheiro provavelmente é parte importante. Ele e o seu partido, o PSOE, cultivaram fortes ligações com grandes empresas de energias renováveis e fundos de investimento que lucram enormemente com o impulso verde de Espanha.
O país é um dos mercados de solar e eólica mais subsidiados da Europa e comprometeu milhares de milhões de euros, grande parte provenientes dos fundos de recuperação verde da UE, em projetos renováveis apoiados por empresas politicamente bem relacionadas.
Grandes empresas de energia espanholas como a Iberdrola e a Acciona, fortemente investidas em vento e solar, beneficiam diretamente de regulamentação favorável e tarifas garantidas acima do mercado para energia verde. No ano passado, o governo espanhol anunciou mais 18 bilhões de euros em subsídios para centrais renováveis.
Esta não é uma questão que deva preocupar apenas os espanhóis, dado quão perto o apagão esteve de causar falhas em toda a Europa. Embora a Península Ibérica seja geograficamente semi‑isolada, a sua rede está sincronizada com o sistema continental; quando a frequência em Espanha despencou a 28 de abril, monitores registaram ondulações desestabilizadoras em toda a rede mais ampla.
Se a separação não tivesse ocorrido quando ocorreu, toda a rede interligada europeia — de Portugal à Polônia — poderia ter sido exposta à mesma falha em cascata. A estabilidade da frequência não é um tema nacional; é continental.
À medida que mais países seguem o exemplo espanhol, eliminando energia nuclear e despachável enquanto dependem fortemente de renováveis baseadas em conversores, cresce o risco de instabilidade em todo o continente.
Alemanha, França e Itália podem descobrir em breve que as suas próprias redes, outrora robustas, são tão fortes quanto os seus vizinhos mais fracos. Neste sentido, as escolhas políticas de Sánchez e a sua recusa em enfrentar as consequências não são apenas um fracasso doméstico — constituem também uma vulnerabilidade europeia.
*Michael Shellenberger é jornalista, escritor e ativista. Esta é a versão em português exclusiva para o portal Claudio Dantas. Tradução de Eli Vieira.