Na véspera da votação de seu impeachment, Fernando Collor foi tentado por vários políticos e militares a fechar o Congresso, mas resistiu. Nos dias que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff, o Exército foi sondado por petistas para decretar Estado de Defesa — resistiu. Agora, tudo leva a crer que Jair Bolsonaro também passou por provação semelhante e que até cogitou uma saída legal que impedisse Lula de tomar posse, mas desistiu.
Essa versão é corroborada pelo ex-comandante do Exército general Marco Antônio Freire Gomes, cuja íntegra do depoimento só é conhecida agora, após a fantasiosa denúncia da Procuradoria Geral da República. À PF, Freire Gomes relatou duas reuniões em que Bolsonaro apresentou a seus comandantes versões da aplicação do Artigo 142, cuja interpretação até então levantava dúvidas sobre o uso das Forças Armadas como poder moderador em crises institucionais.
Nas duas, o general disse que não apoiaria aquele entendimento. O tema, de fato, era polêmico, mas nada teve de secreto. Por dois anos, foi submetido a escrutínio público, explorado pela imprensa e debatido no Congresso. Ives Gandra Martins deu inúmeras entrevistas defendendo sua aplicação; Rodrigo Maia até acionou a consultoria jurídica da Câmara para defender o contrário.
Esse dissenso também esteve presente entre os comandantes das Forças, com o almirante Almir Garnier sendo simpático à ideia, contra o entendimento do general Freire Gomes e do brigadeiro Baptista Júnior. No Alto Comando, a divisão também era notória. Sem consenso jurídico e institucional, a tese da aplicação do 142 via decreto foi engavetada pelo próprio presidente da República, que sempre falou em jogar “dentro das 4 linhas da Constituição”.
Alguns podem dizer que Bolsonaro cogitava um golpe constitucional, outros acham que o STF foi mais rápido, ao torcer a Constituição e as leis em vigor para descondenar Lula e reabilitá-lo politicamente. É possível que nunca cheguemos a um consenso sobre isso também. Afinal, como consta dos “considerandos” da própria minuta do decreto submetida aos generais, a “Constituição de 1988 converteu a moralidade em fator de controle da legalidade”. Sem uma, portanto, não há a outra.
Há moralidade na aplicação da lei que trata dos crimes contra o Estado Democrático de Direito, com base num contexto de cogitação e consultas?
O texto, que substituiu a velha Lei de Segurança Nacional e foi sancionado pelo próprio Bolsonaro, enquadra aquele que “tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”; e também aquele que “tentar depor, com emprego de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído.” Há algum ato de violência ou ameaça por parte do então presidente, mesmo nas reuniões com seus comandantes?
Afinal, caso cedesse às pressões que partiam de todos os lados, poderia ter trocado numa canetada todos os generais que discordavam da interpretação que lhe parecesse mais adequada. Em vez de submeter a minuta de decreto a tantas opiniões, poderia simplesmente ter reunido seu Estado Maior e partido para o rompimento institucional. Um Ditador golpista não pergunta, não faz reuniões, muito menos gravadas e televisionadas.
Se faltou-lhe coragem para dar um golpe, a história poderia vir a até julgá-lo por covardia. Mas se insistir em condenar Bolsonaro pelo que ele não fez, o STF vai acabar transformando-o em herói.