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Quando o Juiz Abandona a Neutralidade

Por Leonardo Corrêa*

Desde o início, é fundamental esclarecer que as críticas apresentadas neste artigo são construtivas e têm como único propósito fomentar a reflexão. Não se trata de um ataque ao Judiciário ou a qualquer Ministro em particular. Em uma sociedade democrática, o diálogo, o contraponto e a diversidade de opiniões são essenciais para o aperfeiçoamento das instituições e o fortalecimento do Estado de Direito.

O sistema jurídico brasileiro é fundamentado no modelo acusatório, no qual a separação entre juiz e acusação é essencial para garantir um julgamento justo. Enquanto o Ministério Público investiga e apresenta denúncias, cabe ao magistrado atuar como um árbitro imparcial, assegurando que o processo ocorra dentro das regras legais e respeite os direitos da defesa. No entanto, quando um juiz assume uma postura ativa que aparenta o favorecimento um dos lados, ele compromete sua neutralidade e afeta diretamente a credibilidade do julgamento.

A recente decisão do ministro Alexandre de Moraes de retirar o sigilo da delação de Mauro Cid, logo após a denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros acusados, levanta uma questão fundamental: por que essa delação permaneceu oculta até agora? Se continha informações relevantes, deveria ter sido divulgada antes, permitindo que a defesa se preparasse de maneira adequada. Ao escolher o momento exato para liberar o conteúdo, Moraes cria um desequilíbrio processual evidente. Essa estratégia pode influenciar não apenas o curso do processo, mas também a opinião pública, que passa a consumir uma narrativa construída antes mesmo que os acusados tenham oportunidade de apresentar sua versão dos fatos.

Mais do que isso, a confiabilidade da delação de Mauro Cid é altamente questionável. Segundo reportagem da Folha de S. Paulo, Cid mudou seu depoimento sobre a suposta trama golpista somente após Alexandre de Moraes – de acordo com a matéria – ameaçá-lo com prisão por descumprimento dos termos da colaboração. Essa mudança teria ocorrido em novembro de 2023, durante uma audiência a portas fechadas no STF, quando Moraes lhe disse que poderia recolocá-lo na cadeia, revogar sua delação e ainda estender as investigações a familiares seus.

A pressão foi tão intensa que Cid alterou detalhes essenciais de seu relato, incluindo a versão de que Braga Netto teria pedido dinheiro ao PL para mobilizar militares. Antes, o próprio Cid dizia que esse pedido não havia existido e que a questão do dinheiro tinha sido uma “brincadeira”. Somente após a ameaça de prisão por Moraes ele modificou sua narrativa para uma versão alinhada com a tese da PGR.

Além disso, há um detalhe que torna essa delação ainda mais frágil: o próprio conteúdo dos depoimentos de Cid não sustenta a tese da PGR sobre um suposto golpe de Estado. Como apontou Claudio Dantas, a leitura atenta da colaboração premiada do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro revela que ele não participou, não testemunhou, não presenciou e sequer tem conhecimento direto sobre qualquer plano golpista. O próprio Cid afirma:

“Eu queria esclarecer que eu pessoalmente não participei de nenhum planejamento, execução ou tomei ciência de pormenores que pudessem estar sendo planejados ou executados. Eu não executei, eu não vi documento, eu não participei de datas ou nada detalhado sobre isso.”

Se o delator não integrou, compactuou ou presenciou qualquer ato ilícito, então como pode entregar alguém? Se as declarações de Cid não embasam as acusações da PGR, por que o Ministro Alexandre de Moraes manteve seus depoimentos em sigilo até agora e ainda resiste a divulgar os vídeos das audiências?

O mesmo ocorre com a suposta reunião golpista, apontada na denúncia como um marco no planejamento da “insurreição”. O próprio Cid desmonta essa narrativa:

“Ali não houve nenhuma discussão sobre um planejamento de nada de prisão, de morte de ministro. Claro que as pessoas estavam indignadas, claro que estavam todo mundo discutindo o que tinha que fazer, o que não tinha que fazer, o que podia fazer, mas não tinha nada ali de uma ata, não, saímos aqui, então você vai fazer isso, você vai fazer aquilo, não tinha.”

Ou seja, o que se tinha não era um plano golpista, mas uma reunião entre aliados políticos indignados com a eleição de Lula, algo completamente diferente da narrativa sustentada pela PGR e pelos veículos de imprensa que ecoam a versão oficial sem qualquer questionamento.

Se as delações da Lava Jato foram anuladas sob a justificativa de que foram obtidas sob coação, o que dizer de um depoimento feito por alguém preso, com bens bloqueados e sua família sob ameaça? A seletividade aqui é gritante. Quando as garantias processuais favorecem um grupo político, elas são amplificadas; quando desfavorecem, são simplesmente ignoradas.

A imparcialidade do magistrado é um princípio essencial do Estado de Direito. O artigo 5º, XXXVII, proíbe a existência de tribunais de exceção, que julgam com regras especiais ou favorecem uma das partes. Quando um juiz seleciona o momento oportuno para expor determinadas provas, cria-se, na prática, um ambiente processual desequilibrado, onde a defesa já entra em campo perdendo de goleada. Isso não fortalece a Justiça – enfraquece a credibilidade das decisões e abre um precedente perigoso.

A politização do Judiciário é um dos maiores riscos para qualquer democracia. O Supremo Tribunal Federal não pode se comportar como um ator político, pois sua função é garantir a estabilidade das regras do jogo, não aparentemente manipulá-las conforme as circunstâncias. Se um magistrado escolhe quando e como divulgar provas com base no impacto que isso terá na sociedade, ele não está apenas julgando – está moldando o destino do processo. Esse tipo de interferência mina a confiança no sistema jurídico e coloca em risco a segurança jurídica de qualquer cidadão.

O que está em jogo aqui não é a defesa de um réu específico – já fui crítico à Lava Jato e á tresloucada prisão de Michel Temer –, mas a proteção de princípios fundamentais que garantem que o Direito seja aplicado de forma justa e previsível. Hoje, essa estratégia é usada contra um grupo político; amanhã, pode ser usada contra qualquer outro adversário que esteja no caminho daqueles que detêm o poder. Se permitirmos que o processo penal seja instrumentalizado para fins políticos, abriremos espaço para um modelo de Justiça onde o que importa não é a lei, mas a conveniência do momento.

Aliás, é curioso notar como esse padrão seletivo já se manifesta de forma explícita. A discrepância no tratamento jurídico entre diferentes grupos políticos no Brasil é cada vez mais evidente. A anulação dos atos processuais contra Antonio Palocci por decisão monocrática do ministro Dias Toffoli, sob a justificativa de que a Lava Jato violou garantias fundamentais, contrasta fortemente com o tratamento dispensado a outros investigados, especialmente aqueles do espectro político oposto.

A decisão de Toffoli, segundo notícia da Folha de São Paulo, anulou todos os atos da Lava Jato contra Palocci, mas manteve válida sua delação, firmada com a Polícia Federal. Ou seja, Palocci teve suas acusações contra terceiros preservadas, mas se beneficiou da anulação das provas contra si mesmo. Esse entendimento foi semelhante ao aplicado a Marcelo Odebrecht, outro delator da Lava Jato que teve seus atos processuais anulados, mas cuja colaboração premiada permaneceu intocada.

No entanto, essa mesma preocupação com a integridade processual parece desaparecer quando os réus pertencem ao espectro político adversário. Se os atos da Lava Jato foram considerados ilegais a ponto de serem anulados, por que a delação extraída sob esse mesmo contexto foi mantida? Esse tipo de seletividade na aplicação do devido processo legal escancara a diferença de tratamento entre réus de espectros políticos distintos.

Se a preocupação fosse realmente com o respeito às regras processuais, a isonomia exigiria que essas garantias fossem aplicadas universalmente, e não conforme a identidade do acusado.

O dever de um juiz não é garantir um resultado específico, mas sim assegurar que o julgamento ocorra dentro das regras previamente estabelecidas. Se esse compromisso for abandonado, a Justiça deixa de ser um pilar da democracia e se torna um mero instrumento de poder.

As mesmas críticas que os criminalistas fizeram com relação aos vazamentos seletivos de Sérgio Moro cabem aqui. Aliás, onde estão os ferrenhos advogados que diziam defender a Constituição, o devido processo legal e as prerrogativas?

*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum

 

 

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Leonardo Correa

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